11.9.05

Badanha

A melodia fúnebre funde-se ao vento forte e quente. Árvores envergam-se ao limite enquanto sinos anunciam o meio dia. Flores acompanham pequenos redemoinhos de ar, protagonistas de um espetáculo raro e cotidiano da natureza: a cerimônia que antecede milagrosas chuvas de verão.

Estirado sobre o capim, Badanha sente as primeiras gotas caírem pesadas sobre sua face redonda. O velho gaudério, porteiro e zelador do cemitério, acordou num sobressalto, levantou e correu desatinado ao ouvir o blim-blom dos sinos da igreja (que afirmava que estava atrasado). Com o resto de memória que lhe restou depois do sucedido na noite anterior, lembrou que havia um velório marcado às treze horas daquele dia. Chegou à capela com as vistas ofuscadas pela poeira do temporal, ofegante, encharcado.

A música cessou. Bebendo o corpo, somente senhoras que, ao ver Badanha, gritaram horrorizadas, uníssonas:
- Seu safado! Sem-vergonha! Tarado!
Badanha, atônito, quis saber:
- Ma que entrevero todo é êsse? Io no sabia que se atrasar era pecado grande!
As beatas gritavam, olhando escandalizadas para o homem.
- Já sei! Mas son tudo un bando de fofoquera mesmo! Nun tem o mínimo de respeito pela vida dos otro. Já andaram tricotando por aí pra descobri os ocorrido. Má vá. Son tudo umas lavadera que num tem o que fazê vem pra cá fingi que ton velando e só ficon é fofo...

As mulheres estavam estáticas. Mantinham os olhos paralisados sobre o zelador. Badanha intimidou-se e desviou do delas o seu olhar. Foi aí que percebeu que, salvo as meias e as botas, estava completamente nu. Enrubresceu. Enrouxou, até. Pediu licença às senhoras, tomou um ramo de flores que jaziam sobre o morto e antes de sair, disfarçou puritano:
- No há nada mais puro que correr como se veio ao mundo, na companhia dos bons espíritos, sendo banhado com esta água sagrada que brota do céu. Até mais ver.
Tentou, inutilmente, fazer graça com o chapéu que costuma e imaginava estar e saiu.
XXXX

A chuva secou. Desenchavido da vida, sem pensar em mais nada a não ser na burrada que havia cometido naquela madrugada, Badanha caminha balançante e nu pelo cemitério sem perceber os olhares curiosos que atraía. A casa do velho Badanha ficava ali mesmo, dentro do vasto terreno do cemitério. Uma área de flores e muita gente morta. Mas não podia ir pra casa. Lembrou-se então de dona Custódia, vizinha dos fundos, e teve uma idéia.

Chegou sorrateiro, pulou a cerca e lá estava o que procurava. O varal de dona Custódia. Murmurou sozinho:
- Ma eu sô un azarado! Por qual desgraça minha única vizinha tinha que ser viúva? Pelo menos é gorda como eu, essa cara!
Sem exitar, arrancou com uma só mão o vestido rosa. Os prendedores de roupa voaram alto, longe, e caíram fortemente sobre o telhado da vizinha. Dona Custódia quis saber o que acontecia e, ao sair, avistou o homem de costas, já pulando a cerca de volta. De espingarda em punho, Custódia foi anunciando:
- Pega ladrão! Pega ladrão!
Filhos, netos, pais, irmãos, tios e amantes de gente morta que rezavam ali, de joelhos, por seus queridos, levantaram-se num só corpo e saíram à caça do misterioso ladrão. Badanha corria sem parar. Veloz e alucinado. Tanto que quando percebeu já não estava mais no cemitério e não havia mais ninguém atrás dele.
- Ufa! Ma qüesta gente é tudo douda mesmo!

Por onde passava todos apontavam e riam de Badanha, que a esta altura da caminhada já estava no centro da cidade. Foi buscar consolo com o amigo Juca, dono da funerária Enfim, merece flores, que ficava nas redondezas. De longe, Juca mirava o comprade com olhar debochado.
- O que foi que aprontaste desta vez, homem? Ou está antecipando o carnaval? Mil fantasias, heim!
- Nun brinca Juca! É cousa muito séria o que me aconteceu.
- Mas então desembuche, cumpadre!
- Enton, tu me conhece faz bastante anos e sabe que sou dado às...As, aos..., Aa...
- Às aventuras da noite não é? Andaste visitando as chinas da dona Bordô novamente, não é?
- Magina Juca! Io só tava passando e...sabe como e, né?
- Não resistiu. Tu não tem jeito mesmo, heim! Pobre da tua mulher!
- Vá bene, cumpade Juca. Mas se fosse tu que passasse o dia inteirinho lidando cuns morto, chegasse em casa e visse tua dona saindo do banho, cuns creme na cara, parecendo até fantasma, toda peladona, com o corpo amarrotadon, aí tu me dava razão.
Juca ia fazer piada mas ao perceber a fisionomia procupada do amigo limitou-se a ouvi-lo.
- E o que aconteceu depois Badanha?
- Enton, saí pra me advertir un poquinho, me passei no trago e fiz uma baita estrago. O meu azar foi que quando cheguei em casa a prenda me esperava com o rolo de pão na mão. Non é que a douda da Marilda me punhou pra fora do pago! Me deixo sem pilcha nem nada, me esbofetiô, me chingô e me espanco até que não pudesse mais guentá! Me disse pra eu nunca mais vortá. Que queria me ver morto-com-a-boca-seca-cheia-de-formiga. Que se eu não saísse ela mesma iria cavá meu túmulo. Fiquei mais perdido que cusco sem dono e depois disso eu só me alembro de acordá com a chuva e ...

Badanha contou à Juca tudo o que aconteceu até chegar ali, no modelito dona Custódia. Acostumado com as trapalhadas do amigo, Juca concentrava-se para não rir.
- Mas no que posso te ajudar?
- Enton....Tu sabe que qui io so loco por aquela xina. Tu sabe que ela tem um gênio de cão e talvez nunca mais me queira ao seu lado. Tu sabe que só de pensar nisso io fico todo repiado. Entonces, é vero ou não?
- É verdade o quê, Badanha?
- Que tu me empresta un caixon, anuncia minha morte, chama minha Marilda, me joga na cova funda e me deixa largado à sorte?
- Espere aí! Deixe-me ver se entendi. Tu queres que eu finja que tu estás morto?
- Non! Cáspita! Quem vai fingi sô eu. Tu só espraia a notícia!
- Não sei não. Acho que isto não vai cabar bem...
- Ma num se fazem mais cumpadre como antigamente. Agora são tudo uns froxo!
- Ah! Está bem! Mas antes vá comprar uma roupa decente. Tu sabes onde fica o atelier do Ramiro. Vá até lá e encomende uma roupa pra morrer com um pouco mais de dignidade. Pode colocar o valor na minha conta.
- Enton te vejo mais tarde. E saiu porta afora.
Enquanto escolhia o caixão para o amigo, Juca lembrou que Ramiro havia mudado de lugar. Como fazia tempo que Badanha não aparecia na cidade, não devia saber. Correu até a porta para indicar o novo endereço, mas já não avistava mais o amigo.

No lugar do atelier funcionava agora o Fórum Municipal. Mas como àquela hora devia estar fechado, Badanha não teria como arranjar confusão. Dali meia hora Badanha volta irritadíssimo e esbraveja:
- Ma é um burro cretino aquele custurero de meia tigela!
- Mas então você encontrou o atelier?
- Ma que encontrei porcaria nenhuma! Ma me chego lá e vejo as porta tudo trancada, com uns letrero grande dizendo que “forun”. Ora esta! Ma que fórum eu vi, ma fórum pra onde? Alfaiate maldito! Magine! Enton por que nun colocô o endereço novo?
Juca gargalhava alto. Badanha não entendeu nada.
- Ma qual a graça? Agora vô te que ser enterrado de vestido.
- A gente dá um jeito. Coloca umas flores por cima...
- Vá bene. Entonces vamu dar início aos combinado!
Então Juca, como era de costume quando alguém importante morria na cidade, saiu de carro anunciando no alto-falante. “É com profunda tristeza e intenso pesar que a funerária Enfim, merece flores anuncia a perda de um notável homem desta comunidade. Faleceu, na última madrugada, do que os médicos diagnosticaram como dor de amor, o nosso querido Badanha. O velório será hoje mesmo, às...”

A notícia correu rápido. As beatas que haviam visto Badanha naquela manhã, depois, então, da sua morte, tinham-no agora como um santo. Diziam-se abençoadas por terem visto a figura do homem. Esqueceram os desaforos. Lembravam-se apenas da “doce” expressão ao dizer: “No há nada mais puro que correr como se veio ao mundo...”Ah! Agora podiam compreender ao que se referia o porteiro. E, como boas beatas que eram, trataram de passar o ocorrido adiante. O plano de Badanha começava a dar certo.
XXXX


Comparecimento em massa no seu enterro. Badanha imóvel, deitado em seu caixão. O povo todo de mãos dadas numa corrente de fé. As histórias sobre São Badanha multiplicavam-se por segundo. Veio gente de longe para fazer pedidos. Badanha teve que ouvir confissões e promessas:
- São Badanha, por favor, me ajude! Prometo que venho até aqui trazer flores e velas para o senhor todos os domingos, nos próximos quatorze anos se não permitir que meu marido descubra minha traição. Oh São Badanha eu lhe serei eternamente agradecida.

As beatas:
- Senhor Badanha, perdoe-nos pela agressividade de hoje cedo. Rezaremos por sua alma até o fim de...
E blá, blá, blá, blá. Badanha não suportava mais tamanha ladainha. Até que, ao lado de Juca, com desespero no olhar, chega a pessoa mais aguardada do enterro. A viúva. Fez-se silêncio na capela. Só ficou a prece morosa de Marilda, que não continha-se de remorso desde de que soube que seu marido havia morrido de dor de amor.
- Oh! Meu bom Deus! Eu faria qualquer coisa para ter meu Badanha de volta. O senhor deveria saber que não era de coração quando desejei sua morte. Prometo nunca mais brigá com ele. Ressucite-o, meu bom Deus.

O povo rezava:
- Ressucite-o! Ressicite-o!
De olhos cerrados, Badanha começou a tremer no caixão. Marilda, desesperada, continuou:
- Nunca mais reclamarei do seu hálito ou ronco, nem da mania de sair pra beber com os amigos....Por favor, Deus, traga-o de volta! Traga meu Badanha pra mim!
Então, milagrosamente, Badanha, aos poucos, ergue-se do túmulo. Os fiéis ajoelham-se. Antes de abrir as pálpebras, Badanha arrisca uma última pergunta à esposa. Forçando o timbre, fala em alto tom. Um porta-voz de Deus:
- E quanto a casa de dona Bordô?
- Ah! Meu pai! Aí já é demais, não?
Badanha ensaia a volta ao túmulo, quando se ouve:
- Ta bem. Ta bem. Se o Senhor me devolver meu Badainha eu prometo não implicar com mais nada!
- Nada mesmo? – quis saber com voz de trovoada.
- Nada! Nada! Nada! – berrava Marilda aos prantos.
E como num plin!, eureca! ou passe de mágica, Badanha saiu lentamente do túmulo. Sacudiu a cabeça, apalpou-se com as mãos, abriu os olhos e fez-se de tonto.
- Ma que ta se sucedendo aqui?
- Milagre! Aleluia!
- Ma que fuzuê é queste em mio cemitério?

Algumas pessoas desmaiaram. Marilda abrçou Badanha com todo seu amor. Pediu-lhe perdão e agradeceu à Deus. Badanha avistou o amigo Juca rindo sozinho, mandou-lhe uma piscadela de canto de olho e foi saindo de mãos dadas com a esposa, passando entre os devotos que continuavam a gritar:
- Aleluia! Milagre! Aleluia!

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