1.6.06

Quase beijos


"Aqui nesse lugar Não há rainha ou rei Há uma mulher e um homem Trocando sonhos Fora da lei" Rosana.

Foi com espanto que assisti pela primeira vez um beijo na boca, de língua. Ele, um rapaz magro, vestindo jaqueta de couro, cuja cor dos cabelos estava mais pra loiro que castanho. Ela, uma moça negra, esguia, com o rosto emoldurado por um chumaço de fios densos, de um encaracolado bem miudinho.

Uma coisa tri estranha de ser ver, eu achei. O jeito como ele laçava a cintura dela. Ela, enroscada no corpo dele, fazendo mil acrobacias com o pescoço. Esquisito, muito esquisito, foi o que me ocorreu naquela hora.

Uma moto vermelha e preta servia de ferrolho para paixão deles. E, sob a luminária da praça, em frente à igreja matriz, aquele beijo de língua não acabava nunca. Eu acompanhava tudo sentada num banco bem em frente, chupando sorvete. Fiquei tão cismada com aquela cena que nem sei por quanto tempo fiquei ali, parada, pateta, olhando praqueles dois.

Meu pai, que estava comigo, e nunca foi muito bom com meus por quês, tentou explicar alguma coisa sobre namorados e beijos mas eu confesso que não entendi nada. Aquilo me causou tanta impressão ao ponto de eu deixar o sorvete derreter, além de sentir uma certa náusea, um certo nojinho. Alguns anos se passaram até que eu mesma vivesse aquela experiência de lábios e saliva. Já minha primeira paixão veio bem mais cedo.

Tiaguinho era meu vizinho e a festinha de cinco anos dele foi depois da minha. Nunca tive preconceito com esta coisa de homens mais novos. Ele tinha um rosto cor-de-cajuzinho e olhos de jaboticaba, arregalados, em eterno espanto.

Era baixo demais pra idade, tinha o nariz chato, as bochechas salientes e um sinalzinho no queixo. Uma pinta que hamonizava tudo, um retoque de última hora, algo como como a cereja colocada sobre a torta de chocolate. Uma composição tão angelical que até hoje reconheço nas crianças mais lindas que vejo.

Frequëntamos a mesma creche e nos protegíamos mutuamente da opressão das educadoras. Eu dividia meu lanche com ele, pois ambos detestávamos a comida gosmenta e sem sal preparada pelas cozinheiras. Íamos para a creche juntos, passávamos os recreios juntos, fazíamos os planos juntos.

Mas só eu tive coragem de levar a fuga adiante naquela tarde em que saímos em excursão pelo nosso próprio bairro. As crianças estavam todas em fila indiana e eu nem vacilei quando passamos perto da rua onde eu morava. As chaves de casa estavam na minha mochila e foi para lá que me refugiei na primeira distração das tias da creche. Eu disse vem e Tiaguinho não veio.

Não sei quanto tempo demoraram para dar falta de mim. Mas lembro que minha mãe voltou mais cedo do trabalho, os olhos marejados de preocupação. A bronca foi mais amena do que eu esperava. Dona Augusta sabia do meu pendor à subversão.

Expliquei a ela o meu raciocínio lógico de que em casa eu me sentia mais em casa e tudo ficou bem. Mas alguma coisa me fazia triste. No fundo, eu não conseguia perdoar Tiaguinho por aquela omissão. Pensei nele durante o jantar, durante a novela e até enquanto escovava os dentes antes de ir dormir.

No dia seguinte, decidi pôr fim àquela paixão. Fossa total. Convenci meus pais a me livrarem da creche e me ocupei de outras coisas. Fiz novas amizades e, sob a orientação da filha da vizinha que cuidava de mim, aprendi a ler e escrever.

Com mais tempo disponível, me aproximei das gurias do outro quarteirão, cujas mães não saiam para trabalhar. Nunca mais fui até o muro que separava nossos quintais chamar Tiaguinho para brincar comigo. Mas todos os dias espiava ele sair de casa, logo depois do café da manhã, rumo ao cárcere infantil.

Tiaguinho sabia que era observado, pois sempre olhava na direção da minha casa. Eu me escondia depressa e depois voltava a espiar. Ficava com os olhos fincados nele até que dobrasse a esquina e sumisse. Sempre o mesmo tênis azul, a camisa listrada de mangas compridas, o corpo solto dentro do macacão de brim, o mesmo jeito saltitante de andar.

Depois disso, eu tinha o dia inteiro para ser feliz. Um universo lúdico que eu criava e recriava ao espírito das minhas idéias. À tarde, a filha da vizinha que cuidava de mim deixava que eu fosse para a rua, ao encontro das mocinhas da mesma idade.

A gente descobria tantas coisas! Cada dia um novo limite era transposto. Fazíamos pique-niques só de chicletes, só de bananas, só de biscoitos. Entrávamos sorrateiras na chácara do vizinho para chupar cana e furtar pêras. Saber que ele tinha uma espingarda deixava tudo ainda mais emocionante.

A vida ganhou tanta intensidade que um dia, em casa, sozinha, cheguei a conclusão de que Tiaguinho definitivamente não era o cara certo para eu dar meu primeiro beijo na boca.

Naquele tempo os guris da mesma idade eram todos uns bobos, metidos a espertalhões, que atrapalhavam tudo. E eu não tinha a menor vontade de namorar nenhum deles.

Éramos, eu e minhas amigas, feministas convictas e eles só participavam das nossas brincadeiras depois de muita negociação. Eram exibidos demais, viris demais e sempre vinham com aquela história de bandidos, guerras, assaltos e não sei mais o quê. Menos o Chicão.

Chicão chegava do colégio por voltas das 17h30, acompanhado do irmão Paulo, o peferido das outras meninas. Ele já estava na quinta série, um cara mais maduro, portanto. Entrava em casa, largava a mochila e logo reaparecia comendo um sanduíche ou uma maçã. Aquele era o horário em que éramos, as gurias, solenemente destituídas do nosso reinado.

Depois das 18h, a rua era deles, dos guris de 12, 13 anos. Uma regra social muito injusta que eles mesmos haviam inventado. Armavam a rede de vôlei sem dar a menor importância se desmanchavam nossas casinhas de varetas e pedrinhas, construídas em longas horas de muito zelo.

Passavam de bicicleta por cima das nossas comidinhas de barro, sementinhas e flores e, sob o pretexto de que aquele era o único momento do dia em que podiam jogar taco, nos obrigavam a desfazer nossas salas de aula montadas ao ar livre, "para desobstruir o ambiente", repetia Marcelinho, o mais irritante de todos eles.

Desencantadas com o universo masculino, descobríamos ali que os meninos que frequentavam a escola eram também uns babacas insensíveis. A não ser o Chicão, que logo se mostou solidário a nossa causa. Foi nosso diplomata.

Tentou convencer os outros meninos de que era possível sim organizar melhor o espaço, de modo que todos pudéssemos nos divertir ao mesmo tempo. Mas a trupe foi irredutível. Então Chicão, nosso herói, ofereceu o quintal da casa dele para que lecionássemos nossas aulas "de continha". A esta altura eu já estava completamente arrebatada de sentimentos profusos.

Tudo piorou quando Chicão passou a me dar atenção especial. Eu era escancaradamente a preferida dele e meu comportamento mudou. Já não tinha tanto tempo para bincar de roda ou me sujar de areia e grama rolando pelo chão.

Às quatro horas, religiosamente, eu voltava para casa. Tomava banho, me perfumava toda com as lavandas da minha mãe e vestia minha roupa de domingo. Depois ficava desfilando pela rua até Chicão voltar da labuta escolar. Meus papos eram outros e minhas amigas me cansavam um pouco com aquela coisa de preferir os mais bonitinhos, embora tivessem aquele comportamento indócil, pra não dizer primitivo.

Carlos Eduardo, o Chicão, me passava tarefas de caligrafia e me explicava coisas sobre tipos de solo, erosão e os fenômenos climáticos que geravam a chuva e o arco-íris. Eu não tinha mais como fugir. Tiaguinho era coisa do passado, aquilo sim era amor de verdade.

Me aproximei da mãe dele e fiquei muito amiga do seu pai, o tio Oliveira, de quem certamente Chicão herdou todo aquele carisma. Um carisma que a cada dia exercia mais fascínio sobre mim.

Em casa, todos eram acostumados com meus momentos de autismo, horas e horas confinada nos meus pensamentos. Mas minha falta de apetite era novidade. Logo eu, que sempre fui a mais gulosa dos três filhos. Minha mãe estava preocupada com meus segredos.

Acho que tudo ficou mais claro para ela no dia em que, ao invés do disco da Xuxa, pedi para o meu pai comprar o vinil da Rosana. Como uma deusa, você me mantém virou minha trilha sonora. Era só a música acabar para que eu voltasse a agulha e escutasse tudo de novo, e de novo, e mais uma vez, até exaurir a paciência de toda a família.

Comecei a me interessar mais sobre aquela cena que havia visto uns dois anos antes, na praça, em frente à igreja matriz. Beijo na boca passou a ser meu assunto preferido. Eu prestava atenção nas novelas, andava pelas ruas à fim de flagrar casais namorando e passei a ler as revistas teen, emprestadas pela filha da vizinha que cuidava de mim.

"Minha deusa", era assim que Chicão me chamava, enquanto corrigia meus cadernos. Não existia a menor chance de eu não me apaixonar. Estava decidido, era com ele que eu me casaria. Meus irmãos, que estavam na mesma faixa etária do Chicão, não gostavam nada da nossa amizade. Mas eu não dava a mínima. Eu era assim, sem o menor preconceito com esta coisa de homens mais velhos.

Um dia, enquanto discutíamos se tomate era legume ou fruto, Chicão se comprometeu a me esperar. Era o nosso segredo. E foi com grande desgosto que, duas semanas depois, recebi a notícia de que ele estava namorando. O pior era que eu conhecia a dita cuja. Fiquei arrasada.

Mariana era linda, a guria mais querida de todo o bairro. Mariana era, sobretudo, minha amiga. A filha da vizinha que cuidava de mim. Fiquei em desalento profundo, mas não podia negar que os dois formavam um casal realmente quase perfeito. Ademais, aquela foi uma ótima oportunidade para eu aprender de vez que o amor não escolhe o alvo.

Agora eram os dois quem me instruiam sobre aquelas coisas de usar cê agá ou xis, além de fazer contas de mais, de vezes e de menos. Mariana me incentivou a continuar treinando o beijo na boca. Me ensinou macetes que envolviam laranjas e até vassouras, além da união dos dedos indicador e polegar, que formavam uma espécie de circunferência na qual eu devia enfiar a língua. Uma boca de mentirinha, ela dizia.

Éramos, enfim, três pessoas maduras e eqüilibradas. E nossa relação era tão carinhosa que, pra falar a verdade, eu nem sofri tanto assim. Afinal, no próximo ano eu entraria para a escola e minha visão sobre os meninos ganharia amplitude.

Tudo bem que não fosse com o Chicão. Uma hora aquela experiência de lábios e saliva haveria de chegar para mim. Eu esperava ansiosa.

No hay comentarios: