Teus
dentes no meu peito, eu ficava imaginando, enquanto te olhava pateta, a
dois metros de ti. Devia sinceramente ter me atirado no teu colo logo
quando tu chegastes. Ter te feito entender que eras meu. Mas eu já
sabia. Sabia que a gente se amaria loucamente, que seríamos líquido
noites inteiras. E sempre acordaríamos secos um do outro. Sempre
querendo mais. Sabia de ti na minha cama. Das minhas roupas no teu
armário. Dos meus cds confundidos nos teus. Dos livros que ninguém mais
saberia de quem eram.
Eu
intuía teu cheiro. Horas a fio numa atmosfera que só nos dois
poderíamos compreender. Poesia, marxismo, lirismo, budismo. Psico isto e
aquilo. Bio, filo, sócio, epistemo, geo, cali; qualquer logia ou
grafia. E haveria tanto tesão! Tanta língua sem nojo. Tanto gosto de
seio e pescoço. Sabia que tu terias ciúmes do meu ex-namorado. Que
perguntaria se ele me amava tão bem quanto tu. Depois disso, brigaríamos
e eu te taxaria machista, insensível, calhorda. Sabia que em seguida
irias embora e levarias alguns cds meus ou teus. Sabia que voltarias. E
que irias e que voltarias muitas e muitas vezes.
Vozes
intermediárias anunciavam a noite em que eu te ligaria dizendo que não,
iria me atrasar, não poderia te acompanhar naquele jantar na casa do
teu amigo muitíssimo enfadonho de longa data. E te pouparia do adjetivo
enfadonho por nada a mais do que esse cinismo hipereducado que a gente
adquire para economizar o outro dos nossos pensamentos mais limpos. E,
antes de desligar o telefone, te perguntaria se estava tudo bem. E tu
dirias que sim, estava tudo certo. Uma resposta cansada e aborrecida,
como se tudo o que esperasse de mim fosse a decepção. Como se eu te
prorrogasse a vida.
Antevia
o momento demasiado em que passado e futuro se tornariam carregados
demais e esqueceríamos, eu e tu, de gozar o presente. Nos tornaríamos
esquivos e evasivos como toda a gente. E criaríamos a defesa. Emergiriam
as culpas. Supus as amarras. E nossa ânsia paralela de desviar. Fugir
das cortesias sem apreço. Dos abraços sem calor. Dos talões e cartões.
Do crédito. Do débito. Das contas. E tantas outras correntes.
Já
atinava minha insegurança diante do teu poder de fazer interesse nos
outros. Teu amor inseduzível. E eu sofreria tanto. Choraria no teu
peito. E seria menina de novo aos domingos no parque contigo. Previa os
prazeres. As delícias a dois. A velha cegueira da verdade única. Sabia
exatamente o que de haveria de vir. Em nome da razão, mesmo sem
perceber, tiraríamos proveito da fraqueza um do outro. E enumeraríamos
cada um dos nossos defeitos, didaticamente.
Segunda-feira, a gente ali no bar. Dois metros ou cinco segundos de ti. Distante uma palavra do nosso futuro amor. Prestes ao que fosse. Eu realmente teria dito que mal me importava aquela gente toda, teria me lançado nas tuas mãos vazias de mim. Eu teria dito que largaria tudo. Mas quis nos livrar do perigo. Achei melhor não. Longe de tudo, pedi mais uma dose sem gelo, caprichei no katchup da batata frita e fiquei lendo teus lábios, enquanto percorria meus medos.
11 comentarios:
Maravilha.
Catatonia de amor à primeira vista, que merda!!
Pq não ousamos? Pq percorremos medos?
Para quê?
Alter ego nos altera, nada é fácil, mas que sinal vinha de lá? Não estaria certo esse medo? Quem sabe era um cara encostado naquela aparência largada? Quem sabe era um tolo que nem mereceria um olhar? Pergunte a ele, em seu pensamento, se ele tiraria pra vocês a roupa lavada da máquina num domingo à tarde e a penduraria no varal... pergunte...
Me vi lendo Caio Fernando de Abreu
é quase o filme; Brilho Eterno ao contrário. fantástico!
ps: ...me é certo o quanto eu adoraria Brasilia, e ainda vou adorar. Na verdade, até já o faço precipitadamente...
Muito bom querida, muito bom.
passeio por aqui de vez em quando. Acho que você nem sabe... Devo confessar que admiro esse novo texto em especial. Muito bom, garotinha.
Stéphanie
Será que a boemia deveria mesmo ser enquadrada no fulcro do dilema burguês (o interesse egoístico do capital por um lado, os ideais de emancipação e de liberdade do homem pelo outro)? Se for assim, ela é o corpo de delito dessa angústia, concorda?
que delícia ser conduzida por suas palavras.
adorei.
O melhor texto sobre um não-relacionamento que eu já li. As frases são quebra-cabeças que vão se encaixando independentemente da forma corrida do texto. Anotarei várias delas no meu caderno, ah, se anotarei. Ainda mais que, no momento de leitura, o assunto se encaixou perfeitamente.
Muito bom Nanda!
;)
já me vi muitas vezes lendo lábios, enquanto percebia os meus medos... lindo texto, indicação de um querido amigo
Parabéns!
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