tem vezes que preciso tirar os sapatos para pensar melhor. um velho amigo me dizia que isso é indício da minha origem indígena, uma coisa assim, garantia ele, de quem mantém hábitos intruscados nos genes desde antes do mundo ser "civilizado".
pensando nessas ideias do meu amigo, deduzi que muitos outros traços da minha personalidade e do meu comportamento me devolvem às origens da aldeia: gosto de mato e lanço mão de qualquer sofisticação por uma boa "indiada", com direito a tomar chuva, atolar no barro e comer com a mão.
me sinto quatrocentas vezes mais confortável dormindo no chão. terra firme e verdadeira que, na minha opinião, só perde para uma boa rede. ainda na adolescência me desfiz do leito de dormir. primeiro, arranquei os pés da cama. depois, desisti completamente do estrado de madeira.
desta forma, o único intermediário entre eu e o piso era o bom e velho colchão. na verdade, nem faço questão do colchão: pode ser um edredom, um tapete ou até uma leve canga praiana. há uns dois anos, no entanto, a vida conjugada trouxe a cama de volta a minha vida.
mas a verdade é que esta coisa de pensar descalça não me larga. tenho agonia de calçados fechados. salto alto, então, nem pensar. claro que já experimentei o gostinho de andar empilhada sobre pinos por aí.
posso dizer que o salto tem um efeito psicológico surpreendente: essa coisa de ficar mais esguia e empinada mexe com os neurônios e com a bunda da gente. é praticamente um degrau de poder feminino. mas comigo não funciona. além de indiscutivelmente desconfortavel, o salto limita os movimentos e subtrai algo de genuíno no rebolado de cada mulher.
então, eu uso sapatilhas e outros calçados rasteiros. mas mesmo as sandálias planas não me deixam pensar direito. é uma coisa para a qual não consigo enxergar nenhuma explicação lógica. simplesmente não consigo. meus dedos precisam respirar e minhas solas gostam do frio e calor nus do piso.
no ambiente de trabalho, isso as vezes beira à tragédia intelectual, principalmente quando o lugar é careta - como é o caso atualmente. mas o que fazer quando escrever um texto de qualidade só é possível quando se está descalça? eu faço assim: olhos para os lados, retiro os sapatos discretamente e tchãram! um desbloqueio imediato acontece.
não sei como tornar isso inteligível, mas é fato que meus pés passam alguma informação para as minhas pernas que se encarregam de levar o recado adiante até que ele chegue ao meu cérebro, que por sua vez conta tudo para as minhas mãos nervosas. aí sim, suavizada, espanco o teclado sem parar até que algum conteúdo que preste saia de dentro de mim.
tudo graças ao meu par de pés, que não são de gueixa nem de princesa mas que me guiam com seus 10 dedinhos por um caminho interior de alívio misturado com imaginação. uma sensação que só poder ser esclarecida pela teoria ancestral do meu amigo ou então por uma sentença pouco lógica: a de que eu realmente raciocino com os pés.
esse é um texto que já publiquei aqui, em agosto do ano passado =)
2 comentarios:
com as linhas
dos pés
a menina
sentia
o vento
o mar
o fogo
a terra
...
o mundo!
"Ouvi falar pela primeira vez de La Que Sabé quando
morava nas montanhas Sangre de Cristo no Novo México, sob a proteção do Pico
Lobo. Uma velha bruxa de Ranchos me disse que La Que Sabé sabia de tudo sobre as
mulheres, que La Que Sabé havia criado as mulheres a partir de uma ruga na sola do
seu pé divino. É por isso que as mulheres são criaturas cheias de sabedoria. Elas são
feitas essencialmente da pele da sola do pé, que tudo sente. Essa idéia de que a pele
do pé tem maior sensibilidade me soou verdadeira pois uma índia da tribo
kiché uma vez me disse que só havia calçado seu primeiro par de sapatos aos vinte
anos de idade e que ainda não estava acostumada a caminhar con los ojos vendados,
com vendas nos pés." Clarissa Pinkola
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