27.5.06

Em Porto Alegre, moradores de rua retratam sua realidade em jornal

Publicação gera renda e estimula busca por futuro mais digno

Segunda-feira é dia de reunião de pauta para 32 adultos que vivem em praças, viadutos, albergues e favelas na capital gaúcha. Eles integram a equipe do jornal trimestral Boca de Rua, que retrata o dia-a-dia da população que não tem onde morar. “A gente também quer nossos direitos respeitados”, defende Michele Aparecida dos Santos, 22, há nove anos na rua e há “dois e pouco” no Boca.

O trabalho existe desde 2.000 e é orientado por jornalistas e psicólogos voluntários da Agência Livre para Infância, Cidadania e Educação (Alice). Ao longo de oito páginas, metade reservada para produção de crianças e adolescentes, o Boca de Rua conta a história de pessoas vítimas de discriminação, despejos e todo tipo de violência - uma gente que só conhece direitos humanos na cartilha.

“Ninguém fica na rua sozinho. Tem que encontrar alguém pra te proteger. Senão já era”, desabafa Michele. Além de assinar matérias e fotografias, os sem-teto são responsáveis pela venda da publicação, a R$ 1,00. No final das reuniões, cada colaborador recebe uma quota de 30 a 40 exemplares. “Eu consigo fazer uns R$ 80 por semana”, conta Patrícia Caldas Garcia, 22, explicando que gorjetas complementam o sustento dela e de suas duas filhas.

“O jornal é um meio de redução de danos, um caminho alternativo para sair da rua”, ressalta a jornalista Clarinha Glock, uma das fundadoras da Alice. Segundo ela, fazer com que os moradores de rua discutam o seu cotidiano e ampliem a responsabilidade sobre seus direitos e deveres é objetivo da ONG. “Com essa prática, há um aumento da auto-estima e do nível de consciência deles”, afirma.

Voz a quem não tem
Manifestações e abaixo-assinados são práticas comuns entre os integrantes do Boca, que também fazem palestras em escolas, universidades e eventos como os fóruns mundiais Social e da Educação. “Esses são espaços a que eles normalmente não teriam acesso”, observa Clarinha, acrescentando que colocar o leitor em contato com a realidade da rua é outra finalidade da publicação.

Com apoio da Alice, o grupo participa ainda de oficinas de hip-hop, teatro e produção de audiovisual. “Nossos vídeos já foram exibidos nos festivais de cinema de Brasília, Fortaleza, Gramado e São Paulo”, explica Reinaldo Luiz dos Santos, 37 anos, da equipe do jornal. “Agora as pessoas nos vêem com outros olhos”, destaca Michele, que tem até rap de autoria própria. “Ano passado cantei minhas músicas para o público da Feira do Livro de Porto Alegre”, conta, orgulhosa.

Produção de rua
Os encontros semanais ocorrem num restaurante popular da capital gaúcha, que serve refeições a R$ 1. Quem tem carteirinha do Boca não paga. Depois do almoço, eles seguem para uma praça nas redondezas onde sentam-se à sombra das árvores para conversar. Os representantes da Alice são ouvidos com atenção, e vice-versa.

A reunião dura cerca de duas horas e serve para discutir os temas a serem tratados na próxima edição, além de agendar datas para entrevistas. O tempo também é destinado a planejar novas atividades, como exposição de fotos feitas pelos moradores de rua e a confecção de brincos, bonés e camisetas com a marca do jornal.

A criação de uma “caixinha comunitária”, para financiar as festas de final de ano, a aquisição de uma sede e a ampliação da tiragem do jornal, que atualmente é de 12 mil unidades, também são metas da equipe.

Olhos e ouvidos atentos
Os integrantes do Boca de Rua usam câmera fotográfica e gravador com desenvoltura. “Muitos deles estão num estágio mais avançado de alfabetização e escrevem as próprias matérias, porém alguns não sabem ler ou escrever”, conta a jornalista Clarinha.

Nesse caso, eles registram as conversas e depois contam a experiência aos orientadores, que transcrevem a história. “A gente tenta colocá-los mais em contato com os textos, trabalhar mais as idéias. Também temos a preocupação de que a edição sempre volte pra eles antes de imprimir”, conta o estudante de Psicologia, Manoel Madeira, da Alice.

Embora ler e escrever não seja obrigatório para fazer o Boca, a proximidade com as palavras estimula o retorno às salas de aula. “Eu voltei a estudar no ano passado e nesta semana começo a 6ª série”, comemora Michele, que esteve sete anos afastada da escola e hoje quer fazer curso técnico de magistério. “Vou lutar pra ser professora. Vou estudar bastante...”, diz, determinada.

Segundo Michele, é difícil driblar as dificuldades quando não se tem lugar apropriado para fazer o dever de casa ou dinheiro para comprar material escolar. “Já perdi a minha pasta três vezes na rua e não desisti de estudar”, conta, lembrando que vencer a falta de intimidade com a matemática também foi um desafio no último ano. “Eu fiquei em recuperação, mas dizia pra mim mesma ‘não vou rodar, não vou rodar’ e consegui tirar 100 no provão do último bimestre”, lembra, satisfeita.

Exceção à regra
Na reportagem do Boca de Rua, também tem um universitário. Depois de morar cerca de dez anos nas ruas, Reinaldo hoje estuda Jornalismo na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e Arquivologia na Universidade Federal do Rio Grande Sul (UFRGS), faculdade que cursa principalmente para ter o direito de morar na Casa do Estudante.

O coordenador do núcleo de integrantes do jornal deixou Salvador, sua cidade natal, em 1996, atraído pela possibilidade de “vencer na vida”. De lá pra cá, viveu pelas ruas e albergues de vários estados. “Cheguei a trabalhar guardando fichas em hospitais”, lembra Reinaldo. “Logo que cheguei em Porto Alegre fiquei sabendo das reuniões do Boca. Fui metade por curiosidade e metade, porque me disseram que serviam lanche lá”, confessa.

Atualmente Reinaldo é responsável por inserir o veículo nos demais meios de comunicação. “Além das reportagens, faço atuo como uma espécie de assessor de imprensa do Boca”, explica. “Nessa hora, os celulares e computadores de amigos são a salvação”, brinca.

Boquinha
As crianças e adolescentes também têm espaço no tablóide. Em encarte especial, que leva o nome de Boquinha, os menores contam histórias e exibem seus desenhos. Nas páginas do Boquinha, a imaginação da meninada cria planetas em que não existem drogas, ninguém briga ou rouba, ninguém se prostitui. No mundo de quem vive à margem dos contos de fadas, não existe mãe ou pai que abandona os filhos e os humanos são de todas as cores.

Ao todo, 15 meninos e meninas se reúnem para brincar, escrever, participar de oficinas de artesanato, teatro, malabarismo e música. De acordo com Clarinha, são na maioria filhos e irmãos dos integrantes do Boca. “Os responsáveis por elas recebem bolsa auxílio de R$ 10,00 por semana, o que ajuda a mantê-las longe do trabalho infantil”, avalia.

O encarte é um lugar para a criatividade correr livre, onde pessoas normais podem virar super-heróis ou só comer de graça. Para a garotada, o ideal mesmo é que “os do bem” se unam para salvar a terra. “Mesmo sem superpoder, a gente tem que fazer isso, porque superpoder não deixa ninguém bom ou mau. Só melhor ou pior”, diz uma história do Boquinha.

No hay comentarios: