Devenir
Tem alguém me chateando as pampas e desconfio que sou eu. Café, por favor. Não, chá não, que é politicamente correto demais. Sim, açúcar. Como eu ia dizendo, há um comichão aqui dentro. Um aperto bem no peito, sabe? Preciso te contar. Me sinto como se assassinasse silenciosa e polidamente a mim mesma. Desculpe ficar te enchendo com essas coisas. Mas me atordoou tua confissão. Falar confissão parece um coisa cheia de culpa. Tua declaração. Isso! Declaração é melhor. Quer dizer, ouvir que me ama desde a primeira palavra que eu disse seis anos depois de nos conhecermos não é algo tão fácil de assimilar. Muita coisa mudou de lá pra cá. É só a gente mirar o espelho. Olha, não quero te magoar. Já magooei muita gente. Te acho uma ótima pessoa. Quer dizer, ótima pessoa soa impessoal demais, mas o que quero realmente dizer é que adoraria me apaixonar por você. Mas tenho certeza de que se realmente me conhecesse, não iria gostar nada, nada de mim. O que estou falando é que sou sozinha. Jamais poderei deixar de ser sozinha. Ta vendo esta gente toda de óculos de armação retangular preta? Pois é. Estão aqui mais ou menos pelo mesmo motivo que a gente. Fazendo hora pro teatro num lugar legal. Um café que também é livraria. Mas quer saber? Me sinto distante de todos. Conversamos como que encenando personagens. Cênicos, somos todos cênicos. Eu poderia te beijar agora, meu bem. Mas não é isso que eu quero. Sabe, me comoveu muito te ouvir. Todas as tuas palavras encantadas sobre mim. E até as não tão delicadas assim. Dissimulada e oculta, você disse. E eu nem me condoí. Sabe por quê? Quer saber por quê? Por que já ouvi isso muitas e muitas e muitas vezes. Inúmeras. Já caiu no vulgar. Esse teu amor, eu guardo comigo. Com zelo, cuidado, carinho que só. E ponto. Como você agüentou tanto tempo? Como pode nos privar do sentimento? Por amor nada, Lúcio. Amor é outra coisa. E é essa outra coisa que eu busco. Um devenir, sabe? Eu sei que você sabe. Me conhece bastante. Alguns me dizem que é assim mesmo. A gente tem que ceder. Mudar. Os dois amantes devem fazer concessões. Sim, mesmo que se violentem por dentro, afinal. Nada disso. Eu não posso acreditar que meu sonho não existe. Eu fico com meu sonho, sabe? Então eu te beijo, a gente faz amor e vive umas duas ou três semanas lúdicas de paixão débil. E só. Por que depois disso, você vai querer que eu mude e deixe de ser um monte de coisas que eu sou, sendo que foi por esse amontoado que você se apaixonou. E eu? Eu idem. Não é um loucura? E deixa um de nós dois vacilar pra você ver. Mesmo sem perceber, a gente vai tirar proveito da fraqueza um do outro. E enumerar cada um dos nossos defeitos, didaticamente. A gente vai abrir mão da parte ruim e fazer o outro reflexo disso. E tudo bem, Lúcio. Continuaremos inteiros e quase intactos. A sorrir e conhecer gentes por aí, pra amar e entorpecer e magoar e assim por diante. Por que somos assim, des-tru-ti-vos. Ah... a velha cegueira da verdade única. Melhor sermos amigos então. Não acha? A gente pode se abraçar, conversar e se sentir à vontade pra falar das dores e chateações, emanar compreensão, frequentar cafés cheios de gente com óculos preto de armação igual e assistindo peças de teatro legais de quando em vez.
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