Improvável e contemporânea
Por que eu estou aqui? Eis uma pergunta que me faço desde a sala de espera. Antes, até... Aliás, eu não aguardava um questionamento desses, tão simplista, você não acha? Quer dizer, o mundo está em colapso, por que eu não viria aqui? Classe média, você sabe...embrutecida pela amargura de não poder fazer nada para mudar o que está feito. Como assim o que está feito? Você, hein? Cada pergunta...Não parece lhufas com o que eu esperava de um pscicanalista.
Mas o que eu estou dizendo, o que quero dizer, é que as regras sociais de convivência criam um imobilismo, uma apatia, uma descrença mesmo... Não tem aquela música do Cazuza "eu vou pagar a conta do analista para nunca mais ter que saber quem eu sou?" Pois é. É exatamente assim que me sinto. É por isso que estou aqui. Você me pergunta qual é meu sofrimento e isso me deixa resignada, depressiva.
Sabe, eu não sou viciada em sexo ou outras drogas, não tenho síndrome do pânico, não estou diposta a ser convencida de que vivi em demasia ou não vivi suficientemente o Complexo de Édipo. Eu sou casada e tenho dois filhos. Como? Sim, um casal, um menino de 12 e uma menina mais moça, de 8. Na verdade fui casada. Sim, fui, não sou mais. É...A modernidade, afinal. Não, não faz muito tempo não. Quatro meses te parece muito tempo? Para mim não. Se levarmos em conta o fato de que fui casada por 14 anos...
É, bem jovem. Eu era uma menina quando disse sim e vim morar nesta cidade. Nesta selva de pedras. São Paulo é uma cidade muito individualista. Cosmopolita, dizem alguns fãs. Mas eu repito, in-di-vi-du-a-lis-ta, assim pausada e separadamente mesmo, que é pra ilustrar melhor. Reproduzimos os sem-teto, os sem-terra, os sem-arroz-nem-feijão, criamos e alimentamos ídolos sem-cérebro. Enfim, é o torpor do capitalismo, não? Banalizar as relações. Desvalorizar a vida. A violência é normal, você sabe.
Sim, você sabe. Eu é que não sei o que faço aqui. Tanta gente passando fome e eu a gastar solenemente uma quantia absurda com você. Não, me desculpe, não é nada contra você. Eu nem conheço você. Você, no final das contas, só está fazendo seu trabalho. Explorando a miséria alheia, é verdade. Mas quem não está? Eu? Eu sou jornalista. A pior das categorias. Por que nós, jornalistas, pintamos a nós mesmos como porta-vozes da sociedade, o que nos faz mais hipócritas do que vocês, terapeutas, que só recebem pra que nos sintamos menos descabidos dentro deste mundo de igualdades utópicas que alimentamos.
Silêncio. É...A utopia. Já parou pra pensar na anestesia coletiva? No indivíduo de gesso? Quando eu era mais jovem eu acreditava em tanta coisa. Hoje sinto preguiça. Hoje sinto um sono. Um sono profundo que, à noite, vira um monstro de culpas e remorsos a me hipnotizar. A atrapalhar minhas petulantes oito horas de sonhos. Uma miséria pessoal e egoísta. Somos todos uns egoístas hipócritas.
Eu nunca fiz terapia e sempre achei que era coisa de gente que...Bem, melhor não dizer. Não gosto de ser injusta ou preconceituosa. Talvez seja só um desconforto de principiante. O caso é que estou um pouco constrangida por estar aqui e...como é mesmo seu nome? Roberto? Posso te chamar de Beto? Pois é Beto, sou refém da globalização, acredita? Eu sofro de pós-modernidade. Meu Deus! O que estou dizendo? Eu sofro de uma contradição separada por um hífen. A vida não pode ser só isso.
Tenho amigos, sabe? Família. Fiz todo o dever de casa. Fiquei nervosa na primeira vez que transei. Fumei florestas de maconha. Escrevi muita poesia com dor-de-cotovelo. Reprovei apenas em uma matéria na faculdade - e por freqüência. Casei, procriei. Sou íntima dos meus filhos. Nunca aprendi a tocar nenhum instrumento, é verdade, o que é uma frustração, naturalmente. Mas quer saber, Beto? Eu fiz aulas de dança e me saí muito bem, o que amenizou essa falta. Além do mais já transferi a carga para o Rafael, meu filho, que faz aulas de piano, guitarra, bateria e violão há três anos. Tem umas coisas que a gente tem que passar adiante, né? Que não nos pertencem. Rafael tem talento, é muitíssimo parecido com o pai. Sabe aquele estilo multi? Faz de tudo um pouco e bem feito? Ainda bem que não herdou também o ceticismo. O Eduardo sempre foi muito descrente de tudo. E eu, a crédulazinha. A reles sonhadora. A boba. Mas eu atraio este tipo de relação, sabia?
Pode fumar aqui? Eu havia deixado o cigarro. Mas liberdade custa caro demais e um vício sempre nos liberta um pouco. Eu sei que você deve pensar justamente o contrário disso. Mas o vício , se por um lado te deixa dependente, também liberta. Dá vazão, sabe? Alivia minha vontade de picotear o editor, de espancar deputados, bater com a própria cabeça na parede ou quebrar a televisão. Entende? Eu teria que comprar outro televisor, pagar despesas num hospital ou iria presa por homicídio. E aí, lá se vai o dinheiro ou liberdade. Ou os dois, né? Então, digamos que é uma relação de custo-benefício. Cigarros são mais baratos. E eu faço exercícios, minha saúde está ótima.
Silêncio de novo. Quer que eu dê uma corridinha aqui pra você ver? Claro que estou brincando. Mas voltando ao assunto, você acha que eu tenho pendor à relacionamentos improváveis? Há! Sabia! Já haviam me avisado que todos os terapêutas dizem isso. Acho que vocês precisam inventar teorias novas, sabe? Mais ousadas. Essas já estão batidíssimas. Ouve-se em qualquer mesa de botequim. Cuidado, hein? É preciso ter visão empreendedora hoje em dia. Daqui a pouco as pessoas só irão até o consultório para pegar prescrição e comprar Prozac. Imagina? Vocês estão no auge agora, mas daqui alguns anos ser terapeuta vai ser uma coisa ultrapassada. Démodé, meu bem.
É que eu estou fazendo um curso de marketing e gestão empresarial voltada para o futuro, sabe? Eu tenho dois filhos, preciso pensar no amanhã. Ser jornalista está cada vez mais difícil. Então, tenho pensado em abrir um negócio bem inovador. Tipo, uma sala de cinema alternativo, que também fosse um café e um centro de meditação, com área reservada para massagens, sabe? Mas massagens mesmo, espirituais, nada de sacanagem não. Não que eu não goste de sacanagem. Eu gosto muito até. É que não sou uma boa administradora do sexo, entende? Não misturo com negócios. Também pensei em montar um restaurante natural que fosse destinado à oficinas que estimulassem as trocas entre as pessoas.
Mas sabe qual é o problema? Meus empreendimentos ideias dependem de investimento e eu não tenho um puto e, se isso não bastasse, ambos não têm a menor garantia de retorno financeiro. Ou seja, mais uma vez caio na tocaia de me envolver com coisas improváveis. Esse é o ponto? Do que você está falando? Tudo bem, eu aceito partir daqui, das coisas improváveis, na próxima vez. Mas por que você está perguntando isso? Meu tempo já acabou? Tão rápido assim? Quer dizer, você foi telegráfico ao falar e eu não me sinto nem um pouco menos angustiada do que estava quando entrei daqui, além do que estou R$ 120 mais pobre. Ah! E nem conseguimos responder a primeira pergunta que você me fez. Então, é assim? Você é tão rápido assim em tudo? Desculpe, desculpe, foi só uma brincadeirinha. De mau gosto, eu sei. Náo, não sei se volto, Beto. Roberto, melhor chamar você de Roberto mesmo. Doutor, doutor Roberto.
Olha, eu não vou engolir esta coisa de que eu atraio tudo de errado que acontece na minha vida não, hein? A gente precisa de alguém para despejar a culpa. Foi por isso que tive dois filhos, para que eles possam dividir culpas entre eles e, com isso, amenizem a culpa que eu e o pai deles sentimos. Não me olhe assim, não. Todo mundo faz isso. A diferença é que eu admito. Mariana vive dizendo que é culpa do Rafael, embora na maioria das vezes eu saiba que é ela a autora das atrocidades domésticas, como comer todo o chocolate, gastar fortunas ao telefone ou manchar o sofá. Claro que dou uma dura nela. Questão de caráter, afinal. Mas dividir culpas é fundamental, você não acha? Eu sou socialista, adoro dividir por aí... Você tem filhos? Ah! Então é isso! Então é mesmo possível que você não entenda nada do que estou dizendo. Sendo assim, talvez eu volte pra te explicar melhor. Bem, talvez eu volte, afinal. Até mais doutor Roberto.
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