27.8.05

uma certa saudade

eu sinto falta das tuas palavras com tato
teu gosto ao embalar pensamentos
o fino trato com meus silêncios
as crueza dos corpos nas noites de amor
um amor de carne e cérebro
com mãos que declaram
despertam
acalmam
um amor que vacila
magoa
some
pula
teme, teme, teme
e esconde as mãos
eu sinto falta das tuas palavras com tato
mas tu tens a memória mais curta que meus cabelos
e tua paixão está sempre por um fio

20.8.05

nós: desavisados, emaranhados e desatados

Teve os pensamentos mais lancinantes a propósito dos dois ali na cama. Sentia-se extraordinariamente exposta a tudo. No corpo, a lembrança do afinco. O ventre ressentido do amor bem feitos de horas atrás. Acordou e ficou lá, nua, a mirar o teto sobre eles. A coxa dele pesada em cima dela. O corpo dele no corpo que era dela. Tão próximos e remotos, cismou enquanto acariciava a si mesma. E esta falta de racionalidade que não a abandonava nunca? E a razão? Onde está a razão? Homem, mulher, conexão, pendor, pudor. Pudores mil, aliás.

Já não era tão bonita assim, sabia. Mas tinha lá o seu charme. Ensaiado e maduro, o que vem a ser a mesma coisa, afinal. Ombros suaves. E os olhos seguros de quem possui sensatez, de quem compartilha o segredo de tudo o que se passa no universo. Coisa de fêmea. Além disso, destaque para sua boca. Uma boca de biquinho. Assim naturalmente entreaberta, descontraída, permissiva até (ouvira certa vez de um amigo de boas transas), o que levava os desavisados (como ele) às nuvens. Conjeturava como homem, sentia-se nítida e escancaradamente mulher.

Segredava. Quem a via caminhando pelas ruas de salto alto, rímel e rebolado, jurava que era tão feminina quanto as outras. Ah! Os desavisados. Mal sabiam de seu cérebro, seu gosto avesso. A energia despendida para conversar sobre receitas, liquidações, filhos e botox. As desculpas para fugir dos chás de fralda, listas de noiva e revistas de cosméticos. O esforço para ouvir das amigas as características que reduziam ex-maridos a meros grandes cafajestes.

Para ela, traição sempre foi negar os sentimentos. Vestir-se das decências mais cristãs e carregar eternamente o fardo dos mandamentos da boa menina, da boa mulher. Da puta e da dama que caminham separadamente. E o que fazia aquele homem alheio a tudo ali do seu lado? Queria mesmo era ficar sozinha. Livrar-se daquele cheiro de macho no próprio colchão. As boas maneiras apontavam para uma relação de mais carinho naquela manhã destemperada. Mas ela nunca foi boa menina, não aprendeu a ser boa mulher.

Ah! O longínquo tempo das regras. Por obrigação, aprender a coser, com s e com z. Fingir castidade para despertar tesão e, depois, fingir orgasmo para aliviar frustração. Ela ali, na cama. Mil devaneios sobre aquele homem incógnito. Sobre si mesma. Um misto de medo e conforto. Vontade de correr ou ficar. Pensando nas jaulas de ser mulher. Ser uma leide. Uma senhora. Evitar a fadiga e viver pela metade. Pior: orgulhar-se disso. Está certo que o eco dos instintos é abafado pela castração secular, não há dúvida, presumiu. Mas não é só isso. Há uma certa covardia. Uma opção de custo-benefício em ser frágil e açucarada. Em deixar o cavalheiro pagar a conta e limitar-se a gemer no sexo. Em ser autista e inocentada.

Como quem se busca, levantou e foi até o espelho. Como quem se busca determinada a se perder. Estava bem para a idade, muito conservada, diziam. Conservada é o adjetivo mais deprimente para qualificar uma mulher. Conservada como uma cenoura? Uma couve-flor? Um figo? Uma compota? Conservada como os fetos que vira nas feiras de ciências? Como o doce de abóbora na geladeira? Como tomate-seco vendido a granel no supermercado? Ora, era consciente dos seus quarenta e três.

Aproximou-se do reflexo no espelho. Examinou a cintura virando-se para verificar a bunda. Percorreu os seios com as palmas das mãos, levantado-os sutilmente. Já não são tão altivos como antes, pensou, chegando mais perto. Esticou as laterais dos olhos com as pontas dos dedos indicadores e sorriu. Sorriu porque lembrou que, apesar de tudo, sabe sorrir. Sempre soube. Era domingo e a dor de cabeça gritava que já não podia beber como antes. Desde a adolescência foi dada aos exageros. Não do tipo que acorda de segunda à sexta-feira em cubículos decorados de porcelana, reconhecendo o chão do banheiro como leito. Mas trocar a chave da porta da casa pela do carro de vez em quando ou acordar ao lado de um ilustre desconhecido, vá lá. A gente envelhece mesmo é de continência, concluiu, voltando-se para a noite anterior.

Festa geriátrica. Uma reunião na casa do Mauro, um dos colegas de trabalho do Max. Mauro, cinqüentão, campeão de golfe, mais um reles desavisado. Teve um princípio de tensão sexual com ele certa vez e, desde então, ele a convidava para tudo, de passeios ao parque à quermesse budista, passando pelo habitual cineminha. Pobre desavisado, o Mauro. Cinqüentão demais, sabe? Com aquela pose de homem bem sucedido há mais de meio século. De assassinar a libido de qualquer uma. Ou só a dela, mesmo, avaliou. Mas, enfim, era sábado e ela optou entre ficar em casa assistindo filme deprê na tv a cabo ou representar um pouquinho, duluída em drinques, canapés e gente excêntrica.

Tudo transcorria solenemente com aquelas conversas intermináveis e entediantes. Qualquer assunto que não os deixasse vulneráveis ao ponto de parecerem com o que eram. Um disfarçado baile de máscaras. Ela foi, estava lá e não havia jeito. Também não seria tão doloroso assim ser agradável. Divertiu-se ao retomar a cara de espanto que Laura fez quando contou que se masturbava. As duas recém conhecidas que completavam a roda olharam-na com piedade. Afinal, a vida sexual dela devia ser um desastre para ter que recorrer a um recurso tão marginal. Quanta gente desavisada no mundo, não? Pediu mais uma vodca ao garçom, explicando que de repente suas amigas haviam ficado muito chatas... Puxou um assunto bem revista Cláudia e tudo voltou a dialogar com o ambiente mais comedido que sóbrio dos egos de meia idade.

Prazer, sou Catarina, ela disse aos sorrisos, esticando a mão para a atual namorada do Max. Uns dez anos mais jovem que ela, a Carla. Mas não notadamente. Sequer era simpática, embora as madeixas muito loiras, lisas e cheias de brilho emoldurassem um rostinho demasiadamente Lady Di. Não era bem ciúmes o que sentiu. Afinal foi ela mesma quem pediu para que Max saísse de casa havia três anos. Estavam certos de que não podiam mais se deter na vida um do outro. Um divórcio muito bem resolvido.

Meus Deus! Há exatos três anos, dois meses e onze dias, recontou, pasma, sentada no criado-mudo. O macho, desavisado, e de cheiro forte, agora roncava a plenos pulmões, laringe, faringe, esticado ao lado dela. Então, nada mais natural que se sentisse esquisita, calculou. E de lá pra cá, Max já havia flertado bastante, ela soube por aí e ele mesmo contou numas noitadas de saudade. Mas este era o primeiro namoro sério, se é que, em se tratando do Max, pode-se chamar de sério um relacionamento com alguém que combinava tanto aquele lugar. Maldade, maldade dela, ela sabia.

Foi até o banheiro fazer xixi e voltou a deitar-se lado a lado com ele. Permaneceu calada e não pôde deixar de sentir certa pena de Carla. Muita presunção, admitia, mas era pena que sentia. Pena por que sabia que Carla, com toda sua beleza e ânsia balzaquiana, jamais teria de Max o que ela teve. Nunca teria com ele o que ele teve com ela. Ela, que tinha quarenta e poucos e jamais sonhou com cavalos brancos. Que já havia superado as lorotas dos contos de fadas há décadas, feito farelo dos castelos e que nunca suportou igreja, embora tivesse um tombo por evangélicos. Ela, que mantinha o desejo a salvo do tempo e que não deixara a idade comer seus ímpetos.

Ela, que era mãe e recentemente sogra. Que não desistia desta coisa de se livrar dos nós, amarras e preconceitos. Que abrigava uma natureza conflitante. Que aprendera a chorar até secar a angústia. Que trabalhava duro pelo pão nosso de cada dia, amém. Que há menos de uma ano percorreu alguns milhares de quilômetros do mundo com uma mochila nas costas. E que, às vezes, sentia-se tão mascarada quanto toda aquela gente na casa do Mauro. Uma farsa, um papel barato, em troca do seu lugarzinho aparentemente seguro nos palcos da vida.

Catarina, que considerava perfeitamente natural que Max estivesse, de verdade, de quatro por Carla, mas mesmo assim batesse na sua porta às três da manhã, por que sim, desculpe o horário, sei que é tarde, que não me comportei muito amigavelmente na festa, mas sim, me olhe nos olhos, quero muito fazer amor com você. Amor com ela, que não condenava as carências, que admitia as fraquezas, que sempre achou que traição de verdade é sonegar instintos. Que, agora, só queria ficar sozinha.

Uma fora de moda, que não se rendia à lipo e demais pirações da pós-modernidade. Que tinha o mau gosto de falar o que pensava. Ela, que só queria ficar sozinha. Ela que, agora, por um breve momento, por um ímpeto trazido pelo vento, desgostou do próprio corpo. Acanhou-se. Acreditou que sua massa física destoava da massa cinzenta do seu cerébro e do sangue exagerado que corria nas suas veias. Um coisa assim, pálida, cinza e vermelha. Uma coisa que destoava. Uma coisa muito brega para uma mulher como ela. Enrolou-se nos lençóis e reconheceu cada parte do corpo do homem ao seu lado.

O homem com quem passou quinze anos de sua história. Com que chorou, viveu, descobriu, esqueceu, aprendeu, teve filhos. O velho Max, que sempre gostou de amigos mais velhos e amor de madrugada. O ex-marido das atuais relações extra-oficiais, que sempre desmaiava depois. . Pensou na vida cotidiana, áspera e confusa. Nas tantas vezes que achou que não seguraria as pontas de suas ambigüidades. Na corrida desenfreada dos projetos humanos. No quanto foi difícil a separação. Em como os dias tinham um tom de repetição, como se o som dos acontecimentos ocupasse o lugar que a nota anterior deixara livre, numa sinfonia pueril a emendar manhãs, tardes e noites. Uma melodia silenciosa que enche de vibração nosso comportamento vivaz diante dessa orquestra toda, até mesmo quando tudo parece perdido.

Sentia-se, agora, tão melancólica. Tomada por uma vontade absurda de ficar sozinha. No entanto, ela sabia, ela comprovava pela vida, a felicidade desemboca em muitos becos de dúvidas tensas e prolongadas. Em muitos questionamentos muitíssimos mais pesados do que abrir a porta ou não. Em contar tudo ou não. Em lipomas ou ginástica. Livros ou revistas de moda. Em é ou não é traição. Existem também os silêncios. As privações emocionais e intelectuais. Os nós na corda bamba de cada um. As circunstâncias desfavoráveis, enfim.

E uma queda sempre anula a outra. Mentira pura, ela sabia. Mas aprender a levantar nos dá um vigor, uma força, uma fé mesmo, que acaba por amenizar os desacertos e as futilidades. Ademais, deduziu, viverei e morrerei e minhas filhas ainda verão muitas coisas estranhas. Quem sabe até uns tetos lancinantes por aí. Ademais, as limitações dos seres humanos explicam tudo. Ademais - deduziu por fim naquela ótica simplificada que o sono empresta aos pensamentos -, ademais, não importa. Têm muitas coisas sobre as quais não temos controle. E a razão? A razão eu dou de presente, não quero pra mim, decidiu-se e sorriu, como sempre sorrira. Chegou mais perto do mesmo Max de nunca, sentiu seu calor e, ainda mais nua, chorou desavisada sem saber bem por quê.

17.8.05

uma imagem, uma foto, um retrato


Tá nos astros

Na parte dúbia de algum lugar
Há um vestido que sobe
Uma sombra que dança
Uma guria que bole
Ascende
E não desgruda das tranças
Respira
Projeta
Nalgum lugar ela se vira
Serve café-feitiço
E há tanto moço que enferma
Engole
Sua angústia - doce ira
Ela reza
Reza
Reza
Faz bruxaria
Transcende
Ela pira
Nalgum lugar onde as luzes tocam o chão
Dissolve
Ela sente nova vida
E ainda conta com tanta poesia de gaveta
Que mesmo que o céu desabe
O amor disfarce
A fé adormeça
O moço suma
A coisa fique preta
A guria sonha
Retornos de urano
Ao pé da letra

14.8.05

paralelos

no fundo, foi mais falta de tolerância do que de amor - ela disse assim como num suspiro, meio sorriso, num passo, um giro. ela disse assim como quem fecha a porta. como quem sai inteira. sem jurar que não volta.
da ilusão

repara que depara com teu sonho todo dia.
e acorda!
dilui ao inverso e faz prosa
ri, lamenta, esquece, goza
abre teu peito
reconta teus acertos
e adormece!
- para suportar teu erro.

3.8.05

cerrado

não há poesia.
só esta marcha desconhecida
que se arrasta pé por pé
(descompasso
melancólico e sério)
a atravessar
o campo de silêncio.

um silêncio mais forte que as lágrimas.