Culpa do inverno
Era domingo e ela tinha um encontro. Ansiosa, saiu de casa três horas antes do combinado. Se encontrariam no final da tarde, num café, luz baixa e música ao vivo. "Clima perfeito para gente se conhecer melhor", ele disse. Não era bem o homem da sua vida mas, sei lá, era inverno e Mariana andava meio cansada daquela propensão intrínseca que ela tinha para se apaixonar em cada esquina.
Se conheceram na sexta-feira, numa festa. No dia seguinte, ela mal havia acordado quando o telefone tocou:
- Oi, é o Beto.
- Oi Beto.
- Então, bateu uma saudade. Gostei tanto de te conhecer.
- Sei. Eu também. Olha só, eu ainda nem escovei os dentes. Dá pra gente conversar outra hora?
- Claro! É que eu queria combinar de nos vermos.
- Tudo bem, a gente marca.
- Pode ser hoje?
- Hoje? Sabe o que é? Hoje não dá. É aniversário da minha avó.
- E amanhã?
- Amanhã é domingo!
- Que que tem?
Ele insistiu, ela ficou sem graça. Beto sugeriu o lugar, ela anotou o endereço. “Manda um abraço pra sua avó”, "tá, um beijo" e desligaram.
Mariana tinha uma regra pessoal para histórias de sucesso: nunca telefonar no dia seguinte. Mas fazia tanto frio no inverno de Porto Alegre que ela resolveu aceitar. No outro dia, sabe-se lá o por quê, Mariana ficou apreensiva. E se Beto fosse um daqueles caras que guarda tudo em caixinhas catalogadas? E se tivesse mania de se olhar nos vidros das vitrines? E se dormisse de meias? Mariana tinha horror a gente que dormia de meias. O beijo era bom, ela lembrava. Resolveu arriscar.
Mas ainda faltavam duas horas para o encontro e ela estava ali, perambulando pelo centro da cidade. Entreteu-se com o cartunista. Olhou o artesanato dos hippies. Comeu churros. Parou em frente ao cartaz. O filme já havia começado há dez minutos. É o tempo do trailler, pensou. Comprou o ingresso e se enfiou no escuro do cinema. Sala semi-lotada.
Sentou-se na primeira fileira, pra não ter que pedir licença nem atrapalhar ninguém. Ô lugarzinho mais desconfortável, quase colado na tela. Acomodou-se de modo a evitar o risco de fazer gargarejos com a própria saliva, tamanha a envergadura do pescoço. Bib’s em punho, o filme era o que ela precisava: divertido, envolvente. O público ria uníssono e comentava.
Mariana detestava gente que comentava no cinema e precisava desabafar isso com alguém. Mas era a única vida na maldita coluna. A não ser por aqueles pés apoiados na poltrona. Vinham da fileira de trás. Engraçado, parecia vir também dali aquela risada aguda e infantil. Curiosa, Mariana dava uma olhadinha pro lado de vez em quando. Tênis vermelho. Espiou de novo. Pernas cabeludas. Devia ser homem. Ou uma feminista. Bem, que importava afinal de contas?
O filme inteirinho transcorre em um dia e meio. O cenário é Buenos Aires. Golpistas, selos, hotéis e muita grana envolvida. Uma película cheia de ritmo e cenas abissais que a fizeram, por fim, amenizar a angústia do primeiro encontro. Ao caminhar em direção a saída da sala, cabeça baixa, Mariana viu de novo aqueles pés, agora lado a lado, descansados no chão, dentro do par de all’star vermelho.
A imaginação é mesmo uma lareira. Ficou supondo que o cara, o dono dos pés calçados nos tênis vermelhos, devia ser um destes tipos escandalosos, que gostam de chamar a atenção. Desses meios largados que se sentem completamente à vontade para ocupar também a poltrona da frente e rir estridente até das cenas menos engraçadas. Um destes solteirões que vão ao cinema sozinhos no frio arrepiante de julho em Porto Alegre. Ela não, ela tinha um encontro.
Consultou o relógio da praça: estava quase na hora. Mariana não fumava, mas parou numa birosca pra comprar cigarros. Precisava relaxar. Saiu apressada, com a mão rolando dentro da bolsa a procura de um isqueiro.
- Quer fogo?
Não era possível. O cara do tênis vermelho! Será que ela estava enganada e, na verdade, ele era um psicopata? Haveria seguido ela até ali? Haveria uma câmera oculta no isqueiro? Mariana curvou a cabeça para ele acender o cigarro dela, mas estava definitivamente decidida a não aceitar balinhas ou quaisquer doces, caso ele oferecesse.
- Eu não fumo, ela disse, meio nervosa.
- Eu notei, ele rebateu.
- Sério. É que estou um pouco ansiosa por causa de um encontro.
- Eu te vi no cinema.
- Onde?
- Na primeira fileira.
- Gostou do filme?
- Nossa! Achei bravo! Que roteiro, não? Aquela cena em que o cara toca o interfone da velhinha, tu colocou teu casaco bem na hora.
- Como assim?
- Ué, fiquei te olhando. Fiz associações das cenas com cada um dos teus movimentos. Tu te mexe pra caramba, hem!
- Ta falando sério?
- Na verdade eu sou um psicopata e te segui até aqui.
- Hum, imaginei. Eu sou Mariana, e tu?
- Carlos Eduardo, cinéfilo, cineasta e produtor. Um romântico.
- Hum, gostei. Quer tomar um café?
- Não, obrigada. Não bebo café, mas te acompanho.
- Engraçado, achei que todo pscicopata gostasse de cafeína.
Pararam numa padaria. Pediram chá e sentaram à mesinha da calçada. Coberto por uma lona de plástico transparente, o ambiente amenizava um pouco aquele vento frio do inverno portoalegrense. Mesmo assim, Carlos Eduardo desenrolou o cachecol do pescoço e colocou-o delicadamente sobre os ombros de Mariana. Depois, tirou um pocket do Fernando Pessoa do bolso e começou a ler. Mariana sentiu uma pontada bem na boca do estômago e relutou. “Olha, preciso ir embora, eu tenho um encontro”, ela repetiu umas oito vezes, sem conseguir se mover.
"Fica, vai! ", ele dizia com a voz amena, emendando Mário Quintana em Florbela Espanca. Mariana se opôs, Beto já devia estar na espera. Tentou mentalizar Carlos Eduardo dormindo de meias, mas não adiantou. Ele era tão encantador dentro daquele par de tênis vermelhos, a barba por fazer, os movimentos exatos, as sobrancelhas espessas, o queixo perpendicular e ainda por cima gostava de poesia! Conversavam sem intervalos, os assuntos pulando de dentro da boca.
Num rompante, Mariana saltou da cadeira, reuniu toda sua força racional e disse “agora é sério, preciso ir, preciso ir!”. Mas ficou. A pontada no estômago tomou elevador até o coração, tarde demais... Não era culpa dela. Não era. Ademais, Carlos Eduardo sabia “Poema em linha reta” de cor e salteado. O que ela podia fazer com aquilo?
De pé, olhando pra Carlos Eduardo, Mariana não sabia o que fazer com aquele calor repentino, queimando-lhe a garganta, os pés, a nuca. Por fim, suspirou:
- Putz!
- Que foi?
- Não vou mais ao encontro.
- Há! Que bom! Senta aí, vai...
Ela sentou.
Carlos Eduardo levantou:
- Pensando bem, putz...
- Que foi?
- Acho que se a gente ficar aqui vou me apaixonar por ti.
- Putz, eu também.
1 comentario:
é o tipo do encontro que considero ideal..
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