18.5.07

Nada a ser dito

Era uma tarde ameaçadora. Depois de quatro anos tornariam a se encontrar. Carla, pra variar, estava atrasada. Andrei esperava sentado à mesa, em frente ao segundo copo de suco. Levemente ansioso, divertia-se ao constatar que, depois de tanto tempo, não conjeturava mais sobre os motivos da demora dela. Fosse antes, estaria sôfrego e paranóico imaginando ela por aí, namoricando outros homens, sorrindo a outros homens, despertando olhares de volúpia em outros homens.

Agora não. Agora ele mantinha os ombros suaves e pensava em motivos racionais, como engarrafamentos e imprevistos comuns ao mundo contemporâneo. Pediu queijo coalho para beliscar. Pesquisava na memória a última vez em que se viram: Carla usava um suéter vermelho, jeans, sandálias rasteiras e sustentava aquele atrevimento comum aos 26 anos.

Ele era três anos mais velho. Havia engordado cinco quilos e perdido um bom punhado de cabelos de lá pra cá. E ela, como estaria? Haveria também mudado as formas? Perdido o rebolado? De repente, Andrei foi assolado pela lembrança daquele olhar de ameixa que ela tinha. Será que ela ainda tinha? Lembrou de outros almoços que tiveram juntos, quando ninguém comia nada e se alimentavam um do outro.

Experimentou a mesma sensação de alma atormentada ao retomar os momentos em que se sentia amedrontado diante do amor dos dois. Um sentimento sempre controverso, voluntariamente feliz e infernal. Duvidou da idéia do reencontro. Talvez não tenha sido uma iniciativa inteligente telefonar para Carla. Será que ele realmente queria saber como ela estava? Quer dizer, será que ele, de fato, precisava ver com os próprios olhos? Não podia fazer como toda gente moderna e enviar um e-mail perguntando?

Tarde demais. Carla já estava ali, metendo os dedos no pratinho dele pra roubar o queijo, cumprimentando ele com a mesma naturalidade com que se cumprimenta o porteiro do prédio, aquela mesma insolência de quem não conhece a dor, de quem contém tanta luz e tanto negro que parece irmã do desespero. Carla sentou-se do outro lado da mesa, estendeu os lábios de orelha a orelha e cravou os olhos nas pupilas dele.

- E então, camarada? O que nos traz aqui?

Ela disse isso de um jeito tão habitual que Andrei ensaiou um princípio de cólera. Sentiu-se ofendido por aquele trato íntimo que Carla tinha, como se não tivesse sofrido uma gota pela falta dele. Como se não sentisse saudade, como se os dois estarem ali, juntos de novo depois de tantos anos, não tivesse a menor importância na vida dela. Teve uma pontada de raiva ao perceber que, enfim, ela parecia inteira. A mesma Carla de antes, incólume ao oceano de veneno que ele despejou em cima dela no dia em que terminaram.

Andrei não pôde responder. Teve vontade de quebrar tudo, de bater nela. Carla conhecia muito bem aquela ira disfarçada e sentiu dó. Ficou abatida ao notar que Andrei, tão talentoso, permanecia inábil. Ignorante a própria capacidade de transformar a vida. Carla emudeceu também ao constatar que o tempo, afinal, não conseguiu romper a perversidade estocada de Andrei.

Depois de cinco minutos de pleno silêncio, Carla levantou calmamente, os olhos dela fixados nos olhos dele. Pediu licença e foi embora. No corpo, a certeza sossegada de que não havia nada a ser dito. Com ela, o amor e a sucessão dos anos haviam atuado de forma bem diferente: ensinaram-na cruelmente o quanto cada minuto, cada chegada, cada abraço, cada beijo e cada despedida furtam pedaços de juventude.

Foi, sem olhar pra trás. Caminhou sem rumo durante horas, certa de que realmente não havia mais nada a ser dito. Nem tempo a perder.

2 comentarios:

Luciana dijo...

Precisei ouvir (e dizer) oceanos de venenos para ter coragem de ir embora uma vez - uma vezinha só - sem dizer palavra.
E foi pra sempre.

Anónimo dijo...

que história triste nega!
mas contece muito por aí...