30.6.10

improvável e contemporânea (parte II)

como eu ia dizendo, me considero uma pessoa bem comum. tenho amigos. família. fiz todo o dever de casa: fiquei nervosa na primeira vez que transei. e, mesmo casando cedo, me diverti muito na adolescência. nessa época, fumei florestas de maconha e escrevi muita poesia com dor-de-cotovelo. reprovei em apenas uma matéria na faculdade - e por freqüência. casei, procriei. sou íntima dos meus filhos. nunca aprendi a tocar nenhum instrumento, é verdade. e isso é uma frustração, naturalmente.

mas quer saber, beto? eu fiz aulas de dança e me saí muito bem, o que amenizou essa falta. além do mais já tratei de transferir a carga para o rafael, meu filho, que faz aulas de piano, guitarra, bateria e violão há três anos. tem umas coisas que a gente tem que passar adiante, né? coisas que simplesmente que não nos pertencem. rafael tem talento, é muitíssimo parecido com o pai. sabe aquele estilo multifacetado, que faz de tudo um pouco e bem feito? tanto ele quanto o pai são assim. ainda bem que o rafael não herdou também o ceticismo cretino. o antônio sempre foi muito descrente de tudo. e eu, a credulazinha. a reles sonhadora. a boba.


pode fumar aqui? eu havia deixado o cigarro. mas liberdade custa caro demais e um vício sempre nos liberta um pouco. eu sei que você deve pensar justamente o contrário disso. mas o vício, se por um lado te deixa dependente, também liberta. dá vazão, sabe? alivia minha vontade de picotear o editor, de espancar deputados, bater com a própria cabeça na parede ou quebrar a televisão. entende? eu teria que comprar outro televisor, pagar despesas num hospital ou iria presa por homicídio. e aí, lá se vai o dinheiro ou a liberdade. ou os dois, o que é bem pior? então, digamos que fumar é uma relação bem-sucedida de custo-benefício. cigarros são mais baratos. e eu faço exercícios, minha saúde está ótima.


(silêncio de novo) quer que eu dê uma corridinha aqui na sala pra você ver como meu pulmão está em ordem? claro que estou brincando. mas voltando ao assunto, você acha que eu tenho pendor à relacionamentos improváveis? há! sabia! já haviam me avisado que todos os terapêutas dizem isso. acho que vocês precisam inventar teorias novas, sabe? mais ousadas. essas já estão batidíssimas. ouve-se em qualquer mesa de botequim. cuidado, hein? hoje em dia é preciso ter visão empreendedora. daqui a pouco as pessoas só irão até o consultório para pegar prescrição e comprar prozac. imagina? vocês estão no auge agora, mas daqui alguns anos ser psicanalista vai ser uma coisa ultrapassada. démodé, meu bem.

desculpe, é que eu estou fazendo um curso de marketing e gestão empresarial voltada para o futuro e isso tem me influenciado bastante.. eu tenho dois filhos, preciso pensar no amanhã. ser jornalista está cada vez mais difícil. então, tenho pensado em abrir um negócio bem inovador. tipo, uma sala de cinema alternativo que também fosse um café e um centro de meditação, com área reservada para massagens, sabe? mas massagens mesmo, terapêuticas e espirituais, nada de sacanagem não. não que eu não goste de sacanagem, claro. eu gosto muito até... é que não sou uma boa administradora do sexo, entende? não misturo com negócios.


mas sabe qual é o problema? meus empreendimentos mentais dependem de investimento para serem colocados em prática. e além de eu não ter um puto no bolso, sei que eles não têm a menor garantia de retorno financeiro. ou seja, mais uma vez caio na tocaia de me envolver com coisas improváveis. você acha que esse é o ponto? do que você está falando?


tudo bem, eu aceito partir daqui, das coisas improváveis, na próxima vez. mas por que você está perguntando isso? meu tempo já acabou? tão rápido assim? quer dizer, você foi telegráfico ao falar e eu não me sinto nem um pouco menos angustiada do que estava quando entrei daqui, além do que estou R$ 200 mais pobre. e nem conseguimos responder a primeira pergunta que você me fez! então, é assim? não, não sei se voltamos a nos ver, beto. roberto, melhor chamar você de roberto mesmo. doutor, doutor roberto.


mas olha, quero deixar uma coisa bem clara: eu não vou engolir esta coisa de que eu atraio tudo de errado que acontece na minha vida não, hein? a gente precisa de alguém para despejar a culpa. foi por isso que tive dois filhos, para que eles possam dividir culpas entre eles e, com isso, amenizem a culpa que eu e o pai deles sentimos.
não me olhe assim, não. todo mundo faz isso. a diferença é que eu admito.

mariana vive dizendo que é culpa do rafael, embora na maioria das vezes eu saiba que é ela a autora das atrocidades domésticas. claro que dou uma dura nela. questão de caráter, afinal. mas dividir culpas é fundamental, você não acha? aliás, você tem filhos? ah! então é isso! então é mesmo possível que você não entenda nada do que estou dizendo. sendo assim, talvez eu volte pra te explicar melhor. bem, talvez eu volte, afinal. até mais doutor roberto.

leia a parte I

4 comentarios:

Anónimo dijo...

Estou bastante interessado nas sessões.

Anna K. Lacerda dijo...

Belo texto para ser encenado! Teatro ou vídeo?
Belo monólogo!

nanda barreto dijo...

ai, anna, é um texto antiguinho já. tem uns quatro anos. nem sei se gosto dele.

s a u l o t a v e i r a dijo...

Maravilhoso cotidiano! Que delicado!
Estou com o Marcio, sentado na primeira fila - concordo com a Anna - do teatro e ver mais das sessões.

Beijo.