31.5.06

Lembranças do presente

Esta coisa de sentimentalismo barato me acompanha desde a infância. Quando eu ainda era muito pequena, chorava baixinho antes de dormir. Lembro que meus pais, na forma de amor muito bonita que eles têm, se contorciam em explicações para as minhas angústias. Mas então quem fez Deus, eu queria entender. Como assim as pessoas morriam?

Meu quarto, com paredes cor de laranja, era um espaço que eu reservava para o dia. Bonecas, livros e giz de cera espalhados pelo chão. À noite, eu preferia a cama do casal. Um reino muito íntimo de afeto e segurança.

Foi aos poucos que minha mãe me convenceu que eu já era grande o suficiente para enfrentar a madrugada sozinha. Você não vai agüentar o remorso se o bicho papão me pegar, era um tipo de chantagem que eu fazia. Mas dona Augusta era, e ainda é, irredutível a extorsão emocional.

E, de um jeito muito firme e cuidadoso, ela argumentou, até me pesuadir, que a cama deles era pequena demais para nós três. Então, lá pelos quatro anos eu adormecia num leito e era carregada para outro, inconsciente nos braços do meu pai. O escuro, que apagava o alarnjado das paredes, me perturbava e eu despertava apavorada pela ignorância do que eu não podia ver.

Será que a boneca no teto ainda era boneca quando as luzes se apagavam? O que não estava ao alcance dos meu olhos? E se tudo fosse mentira e o pica-pau de pelúcia voasse enquanto eu dormia? Mesmo assim eu preferia dormir à sombra. Uma maneira de enfrentar o medo, acho.

Eu tinha planos perfeitos para fugir dos monstros por qualquer porta ou janela que eles entrassem, a não ser que fossem extra-terrestres. Nesse caso, eu continuaria de olhos fechados e permaneceria intacta. Sempre tive fascínio pela abdução. Tanto que certa vez até forgei um sequestro.

Meu pai estava no banho e eu me escondi dentro do armário depois de riscar as paredes com giz e carvão. Escrevi frases ameaçadoras e desenhei símbolos da anarquia, que eu via pichado pelos muros da cidade e achava que só podia ser coisa de seqüestradores.

Seu Osvaldo embarcou na minha brincadeira e simulou desespero. Fingiu ligar para a polícia e bombeiros. Eu que, diferente da minha mãe, sempre fui volúvel a apelos emotivos, logo me entreguei, me devolvi ao lar. Meu pai me recebeu como se há muito tempo não me visse. E era só isso que eu queria dele, uma demonstração de preocupação e carinho.

Acho que ainda hoje sou assim, excessivamente sentimental. Louca de ternura. E, embora eu tenha menos medo do escuro, ainda me pego chorando atordoada de dúvidas antes de cair no sono. E, por mais que o tempo passe, as experiências comprovem e eu ainda tenha suspeitas de que o pica-pau de pelúcia só esperava eu cerrar os olhos para alçar vôo, é no amor dos meus pais, na forma de amor muito bonita que eles têm, que eu ainda encontro muitas das infinitas respostas.

2 comentarios:

Imaginário dijo...

um dia eu quero ter uma filha que nem tu. principalmente que desenhe a casa toda. saudade.

jaci dijo...

deixa eu te seqüestrar?
lov u.