30.1.10

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amorecão


se conheceram numa terça-feira no parque da cidade. desde então, ficaram contando os dias para se rever. ela é filhinha de madame da asa sul. um xodó. ele, vira-lata puro sangue, divide o teto com quatro estudantes de antropologia e ciências da computação num apartamento na asa norte. vidas muito diferentes, a dos dois. mas paixão é paixão. e paixão ninguém freia.

ela usa aqueles sapatinhos ridículos que combinam com roupinhas ridículas, mas não importa. o focinho empinado dela deixou ele maluco. isso sem falar no rebolado. nunca havia visto tanta sincronicidade de patas na vida! e a simpatia? nada parecido com as cadelinhas emergentes que se vê pela asa norte, sempre dando uma de bacanas.

quem tem pedigree de verdade não se importa com estas coisas de camada social. quer viver um grande amor e pronto. espera a vida toda por isso, mesmo quando se tem do bom e do melhor, frequenta o pet-shop da moda e é convidada de carteirinha para aquelas festinhas no lago sul. para espécies assim, o amor cai como uma boa chuva durante a seca prolongada. não dá para perder a oportunidade de se molhar.

o nome dela é sasha e sua dona andava preocupada: há dias não comia direito. só queria ficar deitada. parecia triste. sasha não estava acostumada a sair do esquema apartamento-elevador-térreo-superquadra. apesar de morar pertinho, ela quase nunca ia ao parque. e por isso acreditava que conhecer o gêtalque havia sido mesmo uma obra do destino. desde aquela terça, a única coisa que ela queria é que o domingo chegasse logo.

domingo, quem mora em brasília sabe, é dia de unir as duas asas da cidade pela via do lazer. o eixão, a avenida mais larga do mundo, fica fechado para carros e quem entra em cena são os pedestres, ciclistas e patinadores de todas idades, além de, claro, os cachorrinhos. tudo que sasha queria era sair correndo pela rua pavimentada, as orelhas ao vento, tinindo, rumo às loucas lambidas do gêtalque.

foi uma condição que ele impôs: se me ama mesmo, terá que vir até a minha zona. gêtalque é gato escaldado. não quer mais saber de aventuras. sabe muito bem o quanto duram as paixões das dondocas. se sasha quisesse ficar com ele de verdade, teria que provar. daria um jeito de fugir da asa sul. abriria mão daquela vida fast-food e aprenderia a dar valor ao arroz com feijão do r.u. ele a esperaria no lado norte do buraco do tatu, foi o combinado.

no fundo, temia que ela não viesse. que a dona oferecesse um dia de spa para cadelas e que sasha abrisse mão do amor em nome das aparências. que tudo não tivesse passado de um flerte de terça-feira. mas como ele nunca tinha visto um rebolado tão cadenciado, estava decidido a correr o risco. e fato: gêtalque ficou literalmente de quatro por sasha e aquele focinho arrebitado que ela tinha.

aquele mesmo focinho que agora corria na sua direção, subindo a lomba por baixo do viaduto. sasha foi. ela realmente estava lá. e gêtalque latiu muito naquele domingo. estava feliz. sasha também não poderia querer outra coisa da vida. passearam por todos os cantos da asa norte. gêtalque era popular e apresentou sasha para sua turma. ela estava encantada com tanta novidade. um mundo tão diferente do seu.

almoçaram pelas redondezas do beirute norte. foram ao parque olhos d'água. descansaram à sombra de uma larga mangueira. divertiram-se pela rua até o anoitecer. era, enfim, amor de verdade, ninguém podia negar. na segunda-feira seguinte, a foto de sasha já estava estampada em cartazes por toda a cidade. a dona se dizia arrasada. prometia recompensa. muito gente se mobilizou para encontrá-la.

inútil.

passadas duas semanas, ninguém mais a reconheceria. sem sapatinhos ou lacinhos, o pêlo comprido e despenteado, sasha converteu-se numa cachorrinha riponga, cheia de novas ideologias. foi bem aceita na república de estudantes e até mudou de nome: agora é conhecida por indira. indira gandhi. e passa o dia todo batendo patas entre a unb e as 400, cheia de mimos com gêtalque, abanando o rabo para lá e para cá, mansamente, fazendo a alegria geral da cachorrada da asa norte.


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