29.6.05

(Des)medidos

(ou miscelânea de poeira)

Eu teria dito que largaria tudo, que mal me importavam aquelas pessoas todas conversando amenidades em volta da gente. Teria levantado e te olhado estridente enquanto todas as outras bocas calavam. Devia ter aproveitado o momento de singelo sigilo, quando até o tilintar dos copos guardou silêncio pra te receber. Eu deveria ter ido até tua mesa onde sentado e largado sorria aquele riso de quem já bebeu doses pares. Aquele riso inebriado, de boca escancarada, libertador de vontades dissimuladas. Devia ter me lançado nas tuas mãos vazias. Um vácuo de mim, logo julguei.

Teus dentes no meu peito, eu ficava imaginando, enquanto te olhava pateta, a dois metros de ti. Devia ter me atirado no teu colo logo quando chegaste. Ter te feito entender que eras meu. Mas eu já sabia. Sabia que a gente se amaria loucamente, que seríamos líquido noites inteiras. E sempre acordaríamos secos um do outro. Sempre querendo mais. Sabia de ti na minha cama. Das minhas roupas no teu armário. Dos meus cds junto com os teus. Dos livros que ninguém mais saberia de quem eram.

Intuía teu cheiro. Horas a fio numa atmosfera que só nos dois poderíamos compreender. Poesia, marxismo, lirismo, budismo. Psico isto e aquilo. Bio, filo, sócio, epistemo, geo, cali; qualquer logia ou grafia. E haveria tanto tesão! Tanta língua sem nojo. Tanto gosto de seio e pescoço. Café. Madrugadas insones incensadas à insensatez. Beijos adormecidos. Sonhos. Vinho e virilha. Tua primeira visão do dia fincada no meu olho.

Adivinhava que terias ciúmes do meu ex-namorado. Que perguntaria se ele me amava tão bem quanto tu. Antevia que brigaríamos, te taxaria machista, insensível. Sabia que iria embora e levaria alguns cds meus ou teus. Sabia que voltaria. E iria e voltaria muitas vezes.
Púrpuras vozes anunciavam a noite que eu te ligaria dizendo que não, iria me atrasar, não poderia te acompanhar naquele jantar na casa do teu amigo de longa data e muitíssimo enfadonho e te perguntaria tudo bem? Eu tu responderia que sim, estava tudo certo, cansado e aborrecido, como se tudo o que esperasse de mim fosse a decepção. Como se eu te prorrogasse a vida. Um retardo atroz de tudo que deixaríamos pra trás. E eu, educadíssima, te pouparia do enfadonho por nenhum motivo maior do que este cinismo que a gente adquire de sempre economizar o outro dos nossos pensamentos mais limpos. Aliás, quando começaríamos a ser educados um com o outro?

Emergiriam as culpas. Supus as amarras. E nossa ânsia paralela de desviar. Fugir das cortesias sem apreço. Dos abraços sem calor. Dos talões e cartões. Do crédito. Do débito. Das contas. E tantas outras correntes. Eu queria nos livrar do perigo. Te avisar toda zelosa vá pela direita, não, não, peguemos a esquerda, meu amor. Tentava decifrar o caminho certo. Planejava ter estrelas no bolso, para lançar sobre as palavras polidas, sobre a ferrugem fosca, sobre a privação dos sentimentos - causa do amargor – besta fera da rotina. Ficariam os lençóis, que nem chegaríamos a usar. As lágrimas, destilaria em aquarela. Imaginativa e inebriada, monologava o diálogo:
- É...Pintei aquele quadro ali. Depois talhei em estiletes, pra ficar mais a nossa cara.
- Os discos de vinil? Pode levar, claro. Arranhei alguns.
- Não todos. Só os que te traziam à tona. À flor. À superfície da pele.
- Mas tudo bem. Já passou. Não trazem mais.
- Ãnh? Que tipo de pergunta é esta, agora?
- É claro que não sinto tua falta.
- Não. Nem do sexo.
- Aliás, teu sexo, descobri, é retrô demais.
- Tua mãe ligou.
- O que eu disse?
- Disse que não morava mais aqui. Entrei em detalhes não, que nunca tive paciência pra superproteção disparatada dela.
- Ora, querido, nunca disse antes por que antes era diferente. Antes eu tinha que aturar.
- O delírio da mãe, a irmã enfadonha, as piadas maçantes do pai. Agora, liberdade pra mim, benzinho – eu diria gargalhando, deixando o corpo cair pesado sob a cama. Um peso que eu fingiria leveza...
- Mas deixa eu te contar a novidade! Terminei o livro.
- É, obrigada!
- Ficou "Cama desnuda". Tinha pensado em "Amores mórbidos". Mas achei fracassado demais, embora tenha que reconhecer que me soa mais verdadeiro.
- Adianta insistir não.
- Você não ia gostar de ler. Você não ia nem entender.
- Nada. Você não entende nada.
- Boné?
- Ah! Aquele verde?
- Dei pro eletricista.
- Já dá pra ligar o vídeo no quarto. Bacana, não?
- Não muitos. Ando revendo alguns.
- É, franceses, como sempre.
Sei. Não mudei muito, né?
- Essa tua cara pra mim...
- Tristíssimos e bem dirigidos, como eu gosto.
- Tem coisas na vida que a gente leva, meu bem. Que nos acompanham.Bom, paremos por aqui pra respeitar teu limite de compreensão sobre a lealdade...
- Mas e você? Anda comendo mal? Te achei mais magro, sei-lá. Deixa prá lá.
- Chegaram umas contas prá ti.
- Tão ali na mesinha azul.
- É, agora é azul. Pintei também.
- Iiii.Vem com este papo não. Eu te conheço neném. Tua fraqueza vulgar. O egoísmo que te consome. A piedade que tens de ti mesmo.
- Equece, querido.Vem com beijinho não. Me esquece. Por favor, me esquece. Me deixa. Me larga. É sempre o mesmo novamente.

Ah! Eu a antevia o momento demasiado, encravado de mágoas, em que de nós, só os lençóis. Passado e futuro se tornariam carregados demais e esqueceríamos, eu e tu, de gozar o presente. Nos tornaríamos esquivos e evasivos como toda a gente. E estabeleceríamos a defesa. Ah... a velha cegueira da verdade única.

Então eu levanto e vou até tua mesa dando o melhor de mim. Conversamos meia hora de palavras entre vários ‘eu também’, te beijo, a gente faz amor e vive uns dois ou três meses lúdicos de paixão débil. E só. Por que depois disso, você vai querer que eu mude e deixe de ser um monte de coisas que eu sou, sendo que foi por esse amontoado que você se apaixonou. E eu? Eu idem. Não é um loucura? E deixa um de nós dois vacilar pra você ver. Mesmo sem perceber, a gente vai tirar proveito da fraqueza um do outro. E enumerar cada um dos nossos defeitos, didaticamente. Um de nós vai abrir mão da parte ruim e fazer o outro reflexo disso. E quer saber? Tudo bem. Continuaremos inteiros e quase intactos. Sorrindo e conhecendo gentes por aí, pra amar e entorpecer e magoar e assim por diante. Por que é assim que somos: des-tru-ti-vos.


Dois metros ou cinco segundos de ti. Distante uma palavra do nosso amor e eu já atinava tudo... As inseguranças. Teu amor inseduzível. A dura frieza da solidão. Porque a solidão corta. Enche a gente de calafrios. Nos deixa contidos. Nos priva do calor do outro. Eu choraria no teu peito E seria menina de novo no parque contigo. Previa os prazeres. As delícias a dois. Sabia exatamente o que haveria de vir.

Segunda-feira, a gente ali no bar. Tua barba por fazer e aquele livro no bolso. Ânsia pelas tuas histórias que eu sabia quentes e guardadas na garganta. Viria pra me falar do amor. E era como se fosse só por ti que eu esperava. Só por ti que eu tolerava os golpes e coagulava o corpo talhado de solidão. Eu teria dito que mal me importavam aquelas pessoas todas, teria sentado no teu colo, me lançado nas tuas mãos vazias de mim. Eu teria dito que largaria tudo. Mas tive uma certa preguicinha, sabe? Achei melhor não. Pedi mais uma sem gelo. E fiquei lendo teus lábios, enquanto percorria meus medos.

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