da estação
a gente se corta,
desfolha,
perde a cor,
o viço,
a flor
e volta.
a gente é primavera.
19.9.05
Arroz de confete e arame farpado
Bebo. Bebo por que querem que eu case. Tenha filhos. Um par, no mínimo. Esperam de mim uma carreira bem-sucedida. Com dias bem determinados. Agenda. Contas e talões pra me conferir status. A família. Os amigos. A televisão, o jornal, as revistas, os vizinhos, os desconhecidos e até minha noiva, menos a moça da loja, todos querem que eu case. Na alegria e na tristeza, estaremos juntos, ligados. Pouco importa se por laços de arame farpado.
O casamento institucionaliza os sentimentos. Mas não é só isso. Institucionaliza a necessidade burguesa de estabilidade e segurança. Muda até o nosso nome! Corrompe a vida sentimental das pessoas. Diminui a importância do desejo. Acaba com o sexo!
Não conheço um casal feliz. Um sequer. Conheço atores. Conheço os hipócritas, que anulam o próprio poder de produção e despendem toda a energia para construir fachadas. Pra alegrar os olhos alheios. E até os próprios olhos, nos casos em que o auto-conhecimento é também suprimido.
Estes casais querem é comprar coisas juntos. Serem respeitáveis. Para os mais vaidosos, o que vale é servir de referência. Despertar a admiração dos outros casais, dos filhos dos amigos, dos amigos dos filhos, dos colegas de trabalho. Uma miséria íntima que jamais satisfaz. À noite, deitam-se lado a lado na cama sem poder entender as angústias do parceiro. Ignoram-se mútua e profundamente. Ou são indiferentes mesmo. Dormem vazios ou cheios um do outro. Sonham qualquer coisa que alivie o tormento. Uma pena, realmente uma pena que seja assim.
Todo marido é frustrado. Observo muito por aí. Este homem que também bebe logo ali na outra mesa. Bebe para chegar em casa e suportar a mulher, sei bem. Bebe sem poder sair do poço onde se meteu. As mulheres são também umas infelizes silenciosas, que rangem os dentes atrás dos seus papéis.
Na infância, meus pais eram do tipo vaidosos e demorou muito para que o castelo de açúcar esfarelasse. Antônio e Margarete são um modelo! exclamavam todos, com certa inveja. Até que um dia meu pai deu mole e veio à superfície a relação que mantinha com uma ninfeta três anos mais jovem que minha irmã. Minha mãe, coitada! Parecia mais infeliz pelo fato de o meu pai ter estragado todo o teatro do que pelo adultério. Pirou, a dona Margarete.
Mas foi muito bom pra ela. Remoçou uns dez anos, dos vinte que envelheceu desgraçadamente ao lado dele. Um homem muito bom, o meu pai. Casou-se mais três vezes depois disso. Pintou os cabelos. Mudou de carro. Adolesceu! Eu, que sempre achei aquela nossa relação familiar muitíssimo non-sense gostei mais de vê-lo humano e fraco, como realmente era.
Mas isso não vem ao caso. O que me realment incomoda não é o casamento dos outros. Que se ferrem todos com suas vidas cênicas! Marcos, Beto, Carlos e até o Paulinho já casaram. Com exceção da Cris, esposa do Marcos, nos damos todos muito bem. Às vezes tenho medo de que já estejamos representando também. De que tudo seja uma grande farsa.
Cláudia, minha noiva, quis ser noiva depois de ser namorada. E agora quer ser esposa, ter filhos, uma casa na praia, um apartamento na cidade. É uma mulher muito inteligente, cheia de idéias criativas. Por que diabos não pensa noutra maneira de conjugar a vida, eu me pergunto. Não há dúvida que a amo. Não é disso que estou falando. Casamos mês que vem, se tudo sair como todos planejam. Já recebemos um punhado de presentes caríssimos. Ficamos muito lisonjeados, os dois. Abrimos pacotes, telefonamos para agradecer. Um casal muito fino.
Dirigi sem perceber mesmo onde ia. Percorri muitos e muitos quilômetros no automático. Senti angústia. Medo. Vergonha. Pensei nas últimas vezes que fiz amor com Cláudia. Fiquei observando os casais. Homens e mulheres, separadamente. Senti pena, pena, pena. O mundo parecia tão infeliz. Observei homens no supermercado, nos postos de gasolina, no trânsito. Lembrei dos que já havia visto no barbeiro, nas filas do açougue ou do cinema, no futebol. Pensei nos amigos. Uns parecem mais conformados que outros, mas todos têm um ar de desperdício. Como se ilustrassem sob seus olhos a vida, indo, saindo, esvaindo-se pelo ralo. Uma coisa muito triste de se ver.
Quando dei por mim estava no pontinho, o boteco que freqüentava nos tempos da faculdade. Bebo. Estou aqui há mais de duas horas, colocando tudo em xeque. (Menos a bunda das universitárias). Tento lembrar o que eu queria ser há dez anos atrás. Há dois anos atrás. Ontem. Bebo. Bebo para arejar este mês que seguirá até a data do casamento. O dia em que eu e Cláudia diremos sim à alegria e à tristeza. Em que mudaremos a aliança de dedo e isso irá significar que estaremos juntos, ligados. Laços dourados de arame farpado.
Bebo. Bebo por que querem que eu case. Tenha filhos. Um par, no mínimo. Esperam de mim uma carreira bem-sucedida. Com dias bem determinados. Agenda. Contas e talões pra me conferir status. A família. Os amigos. A televisão, o jornal, as revistas, os vizinhos, os desconhecidos e até minha noiva, menos a moça da loja, todos querem que eu case. Na alegria e na tristeza, estaremos juntos, ligados. Pouco importa se por laços de arame farpado.
O casamento institucionaliza os sentimentos. Mas não é só isso. Institucionaliza a necessidade burguesa de estabilidade e segurança. Muda até o nosso nome! Corrompe a vida sentimental das pessoas. Diminui a importância do desejo. Acaba com o sexo!
Não conheço um casal feliz. Um sequer. Conheço atores. Conheço os hipócritas, que anulam o próprio poder de produção e despendem toda a energia para construir fachadas. Pra alegrar os olhos alheios. E até os próprios olhos, nos casos em que o auto-conhecimento é também suprimido.
Estes casais querem é comprar coisas juntos. Serem respeitáveis. Para os mais vaidosos, o que vale é servir de referência. Despertar a admiração dos outros casais, dos filhos dos amigos, dos amigos dos filhos, dos colegas de trabalho. Uma miséria íntima que jamais satisfaz. À noite, deitam-se lado a lado na cama sem poder entender as angústias do parceiro. Ignoram-se mútua e profundamente. Ou são indiferentes mesmo. Dormem vazios ou cheios um do outro. Sonham qualquer coisa que alivie o tormento. Uma pena, realmente uma pena que seja assim.
Todo marido é frustrado. Observo muito por aí. Este homem que também bebe logo ali na outra mesa. Bebe para chegar em casa e suportar a mulher, sei bem. Bebe sem poder sair do poço onde se meteu. As mulheres são também umas infelizes silenciosas, que rangem os dentes atrás dos seus papéis.
XXXX
Na infância, meus pais eram do tipo vaidosos e demorou muito para que o castelo de açúcar esfarelasse. Antônio e Margarete são um modelo! exclamavam todos, com certa inveja. Até que um dia meu pai deu mole e veio à superfície a relação que mantinha com uma ninfeta três anos mais jovem que minha irmã. Minha mãe, coitada! Parecia mais infeliz pelo fato de o meu pai ter estragado todo o teatro do que pelo adultério. Pirou, a dona Margarete.
Mas foi muito bom pra ela. Remoçou uns dez anos, dos vinte que envelheceu desgraçadamente ao lado dele. Um homem muito bom, o meu pai. Casou-se mais três vezes depois disso. Pintou os cabelos. Mudou de carro. Adolesceu! Eu, que sempre achei aquela nossa relação familiar muitíssimo non-sense gostei mais de vê-lo humano e fraco, como realmente era.
XXXX
Mas isso não vem ao caso. O que me realment incomoda não é o casamento dos outros. Que se ferrem todos com suas vidas cênicas! Marcos, Beto, Carlos e até o Paulinho já casaram. Com exceção da Cris, esposa do Marcos, nos damos todos muito bem. Às vezes tenho medo de que já estejamos representando também. De que tudo seja uma grande farsa.
Cláudia, minha noiva, quis ser noiva depois de ser namorada. E agora quer ser esposa, ter filhos, uma casa na praia, um apartamento na cidade. É uma mulher muito inteligente, cheia de idéias criativas. Por que diabos não pensa noutra maneira de conjugar a vida, eu me pergunto. Não há dúvida que a amo. Não é disso que estou falando. Casamos mês que vem, se tudo sair como todos planejam. Já recebemos um punhado de presentes caríssimos. Ficamos muito lisonjeados, os dois. Abrimos pacotes, telefonamos para agradecer. Um casal muito fino.
XXXX
Hoje fui provar minha armadura, roupa de noivo. Conheci uma mulher. Letícia. Uns vinte e cinco. Muito bonita dentro da sua penumbra de viver isolada do mundo. Letícia trabalha na loja de roupas em que experimentei meu traje de príncipe encantado. Mas quer ser pintora. Tem dom, pude ver nas paredes. Sou filha da dona, ela me disse fincando alfinetes nas barras da calças.
Você não me parece muito ansioso com o casamento. Também, pudera, comentou enquanto me ajudava a abotoar as mangas da camisa, você é tão jovem pra se meter nessa! Vinham muitos como eu ali. Uns coitadinhos, ela achava. E ria debochada por que as mulheres, considera, são muito espertas. Apostava que minha futura esposa era uma destas mulheres tradicionais, uma destas cadelinhas comedidas e respeitáveis que cuidaria com todo zelo da imagem do casal, dos bens da família.
Nem sei se ela chegou a dizer cadelinhas, assim com todas as letras. Acho que não. Letícia, ao contrário do que se pode imaginar, não demonstrava nenhum amargor no jeito de dizer aquilo. Parecia mesmo contar um filme ao qual já assistiu muitas, muitas vezes. Um pouco de desdém e tédio, talvez. Conversamos rapidamente. Mas ela foi incômodo em tempo integral. Até agora tenho Letícia atravessada na garganta. Saí da loja com o eco de suas palavras nos meus ouvidos.
Ninguém resiste a tantas regras! Eu devia ter o que? Uns trinta e dois? Vinte e oito, corrigi. Nossa! Eu era realmente muito jovem e já me sentiria espremido por todos os ângulos, por todas as pessoas. Tem louco pra tudo, afinal. É bom que dá um suco, ela ironizou. São tantas as leis, você não acha? Ela largava as palavras de um jeito sem a menor responsabilidade, eu julguei. O bom é que nada na vida é definitivo, né? Ela finalizou.
Eu concordei, sem saber se realmente concordava. E saí da loja com o eco das palavras dela nos meus ouvidos: ninguém-resiste-a tantas-regras-eu-tinha-apenas-vinte-e-oito-ninguém-consegue-viver-com-tantas-leis-tantas-regrinhas-não-pode-isto-não-pode-aquilo-use-terno-compre-tal-pasta-de-dentes-sapato-horários-estas-burguesinhas-tradicionais-uma-mulher-que-eu-jamais-conheceria-comedida-respeitável-uns-coitadinhos-os-homens.
Você não me parece muito ansioso com o casamento. Também, pudera, comentou enquanto me ajudava a abotoar as mangas da camisa, você é tão jovem pra se meter nessa! Vinham muitos como eu ali. Uns coitadinhos, ela achava. E ria debochada por que as mulheres, considera, são muito espertas. Apostava que minha futura esposa era uma destas mulheres tradicionais, uma destas cadelinhas comedidas e respeitáveis que cuidaria com todo zelo da imagem do casal, dos bens da família.
Nem sei se ela chegou a dizer cadelinhas, assim com todas as letras. Acho que não. Letícia, ao contrário do que se pode imaginar, não demonstrava nenhum amargor no jeito de dizer aquilo. Parecia mesmo contar um filme ao qual já assistiu muitas, muitas vezes. Um pouco de desdém e tédio, talvez. Conversamos rapidamente. Mas ela foi incômodo em tempo integral. Até agora tenho Letícia atravessada na garganta. Saí da loja com o eco de suas palavras nos meus ouvidos.
Ninguém resiste a tantas regras! Eu devia ter o que? Uns trinta e dois? Vinte e oito, corrigi. Nossa! Eu era realmente muito jovem e já me sentiria espremido por todos os ângulos, por todas as pessoas. Tem louco pra tudo, afinal. É bom que dá um suco, ela ironizou. São tantas as leis, você não acha? Ela largava as palavras de um jeito sem a menor responsabilidade, eu julguei. O bom é que nada na vida é definitivo, né? Ela finalizou.
Eu concordei, sem saber se realmente concordava. E saí da loja com o eco das palavras dela nos meus ouvidos: ninguém-resiste-a tantas-regras-eu-tinha-apenas-vinte-e-oito-ninguém-consegue-viver-com-tantas-leis-tantas-regrinhas-não-pode-isto-não-pode-aquilo-use-terno-compre-tal-pasta-de-dentes-sapato-horários-estas-burguesinhas-tradicionais-uma-mulher-que-eu-jamais-conheceria-comedida-respeitável-uns-coitadinhos-os-homens.
XXXX
Dirigi sem perceber mesmo onde ia. Percorri muitos e muitos quilômetros no automático. Senti angústia. Medo. Vergonha. Pensei nas últimas vezes que fiz amor com Cláudia. Fiquei observando os casais. Homens e mulheres, separadamente. Senti pena, pena, pena. O mundo parecia tão infeliz. Observei homens no supermercado, nos postos de gasolina, no trânsito. Lembrei dos que já havia visto no barbeiro, nas filas do açougue ou do cinema, no futebol. Pensei nos amigos. Uns parecem mais conformados que outros, mas todos têm um ar de desperdício. Como se ilustrassem sob seus olhos a vida, indo, saindo, esvaindo-se pelo ralo. Uma coisa muito triste de se ver.
Quando dei por mim estava no pontinho, o boteco que freqüentava nos tempos da faculdade. Bebo. Estou aqui há mais de duas horas, colocando tudo em xeque. (Menos a bunda das universitárias). Tento lembrar o que eu queria ser há dez anos atrás. Há dois anos atrás. Ontem. Bebo. Bebo para arejar este mês que seguirá até a data do casamento. O dia em que eu e Cláudia diremos sim à alegria e à tristeza. Em que mudaremos a aliança de dedo e isso irá significar que estaremos juntos, ligados. Laços dourados de arame farpado.
15.9.05
Lapso e cacos de vidro
Acordo às 23 horas com certo amargor na boca e telefono para Patrícia.
- Vamos nos ver?
- Não sei. Quando?
- Agora.
- Agora nem pensar.
- Preciso conversar com você
- Acha mesmo que temos alguma coisa pra falar um ao outro?
Jantamos em silêncio. Tudo parecia vago. Nosso encontro, despropositado. Sem nexo.
- Hoje faz três meses que eu disse que não te amava mais - eu falei muito naturalmente, voz baixa, sem levantar os olhos, como quem diz “passe o sal, obrigada”.
- Af! Então saímos para comemorar, é isso?
- Eu te amo Patrícia.
- É? E eu acredito no Bob Jeff. Olha, eu não vim aqui pra isto. Acho que falamos exaustivamente sobre nosso pseudo-relacionamento. Você foi muito claro da última vez, límpido até, e foi abaixo de muita mágoa que eu decidi que não importa o que aconteça, não quero mais você na minha vida.
Vontade de pedir à Patrícia “põe a mão aqui, pega aqui, vai! Veja como estou por você”. Mas precisava respeitar o momento. Afinal, ela tinha razão. Eu sou um idiota.
- Fiz um painel com seus textos, suas cartas, suas fotos, suas pinturas. Você está por todo o meu apartamento. Volta pra mim?
- Você me diverte muito, Raul.
- É? Põe a mão aqui e veja como estou desde a hora em que falei com você ao telefone. O jeito que fico desde a primeira vez que te vi.
Patrícia não pegou nem achou graça.
Levantei e fui ao banheiro. No caminho, um sujeito de cabelos bem penteados e camisa azul, abotoada até o pescoço, levanta-se da mesa: “Oi, permita-me que eu pergunte, a moça de amarelo que está com você, é...e..Estão juntos?” Eu apenas disse: Ela é muito bonita, não?
Quando voltei, o engomadinho estava sentado no meu lugar. Patrícia sorria ternamente para ele, o que me deixou furioso. Sem dizer uma palavra, peguei Patrícia pela mão e deixei sobre a mesa a quantia suficiente para pagar a conta. O cara ficou lá, a nos olhar com aquela cara de babaca que ele tinha. Fomos para minha casa.
Patrícia tirou a roupa. Eu tirei a camisa. Patrícia realmente me excitava. Cabelos muito negros e lisos que varriam seus ombros suavemente, enquanto se despia. Fazia aquilo como se fosse um ritual. De um jeito de quem sabe estimar o próprio corpo. Como quem diz me veja, veja o que tenho aqui, você quer?
Tem olhos profundos. Um olhar inquieto que parece rasgar a lógica de tudo. Corpo perfeito: de costas há uma simetria bem desenhada de ossos e curvas; de frente, peitos tensos e suaves ao mesmo tempo. Sólidos. De um tamanho que não se pode controlar a vontade de levá-los a boca e salivar, beijar, morder. Quadris largos acomodam a bunda de carne firme e segura. O osso ilíaco, as ancas, que transparece mesmo quando Patrícia está vestida fica ainda mais estimulante quando está nua.
Ereção. A beleza dela fez meu corpo estremecer. Secou minha boca. Agitou meus dedos. A sensação do imã no corpo. Ninguém poderia deixar de assombrar-se com sua composição. Com seu sorriso. O triângulo de delicada penugem. Meu desejo enfurecia-me e Patrícia veio em minha direção. Pensei numa porção de coisas libidinosas enquanto ela se aproximava. Caminhava de um jeito requebrado. Movimento. Tensão. Movimento. Tensão.
Patrícia foi empurrando muito vagarosamente seus seios contra o meu tronco. Deitamos. Me sentia num estado de idiotia permanente. Euforia constante. Beijei o pescoço dela. Lambi os seios dela. Os mamilos endureceram. Apaguei a luz. Vinha um feixe de luar pela fresta da janela que iluminava partes do corpo de Patrícia, de acordo com a posição que ela estava. Peguei seus cabelos, passei as mãos repetidamente em seus ombros, encontrei suas coxas. A parte interna das coxas. Patrícia estava úmida. Muito rápido e dissimulado tirei minha calça.
Ereção ainda mais forte. Eu era um ostentador. Um exibicionista. Fiquei olhando pra mim pra chamar a atenção de Patrícia. Ela me abraçou daquele jeito que se abraça quando se está magoado. Estendi seu corpo relaxado e devasso sobre a cama e segui a curiosidade da minha língua. Ela estava de olhos fechados. Dedilhei todos os pontos de junção do seu corpo. Sentia um prazer muito íntimo em olhar para Patrícia. Uma ansiedade de menino. De me lambuzar com o cheiro de cada parte do seu corpo. De matar a secura dela. A saudade. Mas Patrícia não estava ali. Tampouco eu estava ali.
Levantei. Vesti minha roupa. Coloquei de volta a roupa de Patrícia. Tinha um rosto melancólico. Salvo o olhar, Patrícia mantinha sempre aquele ar melancólico, mas quase sempre sorria. Fingindo. Para que pensassem que estava alegre. Para que imaginassem que era feliz.
- Eu realmente não te amo mais – ela disse sem conseguir esconder a tristeza que sentia por isso. Como se sentisse insatisfação por não me amar mais.
- Tudo bem, eu posso te conquistar de novo – eu rebati mais sem graça do que nunca.
Perturbador ouvir aquilo daquele jeito verdadeiro que parecia ter na voz dela. Depressão instantânea. Não tive coragem de pedir que ficasse. Vi Patrícia indo embora sem me beijar, sem me abraçar, sem chorar. Só aquele par de olhos profundamente inquietos que me faziam entender que, de alguma forma, nos arrependeríamos por muito tempo, eu e ela, pela falta de jeito que tivemos para amar um ao outro. Pensei em pedir desculpas. Mas foi ela quem me disse:
- Me desculpe, Raul. Algo muito forte em mim se quebrou. Ou endureceu, não sei bem. Não quero mais te ver.
E foi. Um jeito de ir que abriu o cofre fechado dos meus tormentos. Foi e deixou tudo no mais amargurado vazio. Deixando tudo vazio. No mais dilacerado torpor.
Acordo às 23 horas com certo amargor na boca e telefono para Patrícia.
- Vamos nos ver?
- Não sei. Quando?
- Agora.
- Agora nem pensar.
- Preciso conversar com você
- Acha mesmo que temos alguma coisa pra falar um ao outro?
Jantamos em silêncio. Tudo parecia vago. Nosso encontro, despropositado. Sem nexo.
- Hoje faz três meses que eu disse que não te amava mais - eu falei muito naturalmente, voz baixa, sem levantar os olhos, como quem diz “passe o sal, obrigada”.
- Af! Então saímos para comemorar, é isso?
- Eu te amo Patrícia.
- É? E eu acredito no Bob Jeff. Olha, eu não vim aqui pra isto. Acho que falamos exaustivamente sobre nosso pseudo-relacionamento. Você foi muito claro da última vez, límpido até, e foi abaixo de muita mágoa que eu decidi que não importa o que aconteça, não quero mais você na minha vida.
Vontade de pedir à Patrícia “põe a mão aqui, pega aqui, vai! Veja como estou por você”. Mas precisava respeitar o momento. Afinal, ela tinha razão. Eu sou um idiota.
- Fiz um painel com seus textos, suas cartas, suas fotos, suas pinturas. Você está por todo o meu apartamento. Volta pra mim?
- Você me diverte muito, Raul.
- É? Põe a mão aqui e veja como estou desde a hora em que falei com você ao telefone. O jeito que fico desde a primeira vez que te vi.
Patrícia não pegou nem achou graça.
Levantei e fui ao banheiro. No caminho, um sujeito de cabelos bem penteados e camisa azul, abotoada até o pescoço, levanta-se da mesa: “Oi, permita-me que eu pergunte, a moça de amarelo que está com você, é...e..Estão juntos?” Eu apenas disse: Ela é muito bonita, não?
Quando voltei, o engomadinho estava sentado no meu lugar. Patrícia sorria ternamente para ele, o que me deixou furioso. Sem dizer uma palavra, peguei Patrícia pela mão e deixei sobre a mesa a quantia suficiente para pagar a conta. O cara ficou lá, a nos olhar com aquela cara de babaca que ele tinha. Fomos para minha casa.
Patrícia tirou a roupa. Eu tirei a camisa. Patrícia realmente me excitava. Cabelos muito negros e lisos que varriam seus ombros suavemente, enquanto se despia. Fazia aquilo como se fosse um ritual. De um jeito de quem sabe estimar o próprio corpo. Como quem diz me veja, veja o que tenho aqui, você quer?
Tem olhos profundos. Um olhar inquieto que parece rasgar a lógica de tudo. Corpo perfeito: de costas há uma simetria bem desenhada de ossos e curvas; de frente, peitos tensos e suaves ao mesmo tempo. Sólidos. De um tamanho que não se pode controlar a vontade de levá-los a boca e salivar, beijar, morder. Quadris largos acomodam a bunda de carne firme e segura. O osso ilíaco, as ancas, que transparece mesmo quando Patrícia está vestida fica ainda mais estimulante quando está nua.
Ereção. A beleza dela fez meu corpo estremecer. Secou minha boca. Agitou meus dedos. A sensação do imã no corpo. Ninguém poderia deixar de assombrar-se com sua composição. Com seu sorriso. O triângulo de delicada penugem. Meu desejo enfurecia-me e Patrícia veio em minha direção. Pensei numa porção de coisas libidinosas enquanto ela se aproximava. Caminhava de um jeito requebrado. Movimento. Tensão. Movimento. Tensão.
Patrícia foi empurrando muito vagarosamente seus seios contra o meu tronco. Deitamos. Me sentia num estado de idiotia permanente. Euforia constante. Beijei o pescoço dela. Lambi os seios dela. Os mamilos endureceram. Apaguei a luz. Vinha um feixe de luar pela fresta da janela que iluminava partes do corpo de Patrícia, de acordo com a posição que ela estava. Peguei seus cabelos, passei as mãos repetidamente em seus ombros, encontrei suas coxas. A parte interna das coxas. Patrícia estava úmida. Muito rápido e dissimulado tirei minha calça.
Ereção ainda mais forte. Eu era um ostentador. Um exibicionista. Fiquei olhando pra mim pra chamar a atenção de Patrícia. Ela me abraçou daquele jeito que se abraça quando se está magoado. Estendi seu corpo relaxado e devasso sobre a cama e segui a curiosidade da minha língua. Ela estava de olhos fechados. Dedilhei todos os pontos de junção do seu corpo. Sentia um prazer muito íntimo em olhar para Patrícia. Uma ansiedade de menino. De me lambuzar com o cheiro de cada parte do seu corpo. De matar a secura dela. A saudade. Mas Patrícia não estava ali. Tampouco eu estava ali.
Levantei. Vesti minha roupa. Coloquei de volta a roupa de Patrícia. Tinha um rosto melancólico. Salvo o olhar, Patrícia mantinha sempre aquele ar melancólico, mas quase sempre sorria. Fingindo. Para que pensassem que estava alegre. Para que imaginassem que era feliz.
- Eu realmente não te amo mais – ela disse sem conseguir esconder a tristeza que sentia por isso. Como se sentisse insatisfação por não me amar mais.
- Tudo bem, eu posso te conquistar de novo – eu rebati mais sem graça do que nunca.
Perturbador ouvir aquilo daquele jeito verdadeiro que parecia ter na voz dela. Depressão instantânea. Não tive coragem de pedir que ficasse. Vi Patrícia indo embora sem me beijar, sem me abraçar, sem chorar. Só aquele par de olhos profundamente inquietos que me faziam entender que, de alguma forma, nos arrependeríamos por muito tempo, eu e ela, pela falta de jeito que tivemos para amar um ao outro. Pensei em pedir desculpas. Mas foi ela quem me disse:
- Me desculpe, Raul. Algo muito forte em mim se quebrou. Ou endureceu, não sei bem. Não quero mais te ver.
E foi. Um jeito de ir que abriu o cofre fechado dos meus tormentos. Foi e deixou tudo no mais amargurado vazio. Deixando tudo vazio. No mais dilacerado torpor.
12.9.05
reduzida
nesta segunda
somos só aparência
que disfarça
o desespero
sufoco,
estímulo zerado,
nada convoca,
nenhum corpo convida,
as carnes parecem mortas,
os olhos, esquecidos.
páginas em branco.
viradas. reviradas.
desvividas.
quero de volta minha inocência!
meu riso fácil
meu andar desleixado
onde está o que me traduz?
aceito minha torpeza
(seca essência)
ora rock, ora roots
meus extremos dilacerados
curiosidades.
idade?
consumida pela imperfeição
ensaio encontros inevitáveis
com os loucos rumores
do desagravo:
da minha falta de fé,
da minha mudez débil,
da minha atroz vaidade
(vontade de poesia)
preencho linhas
por que estou
vazia
ou só pra entender o que passa
o que fica
o que marca
neste dia que se acaba
por nada.
nesta segunda
que desponta
atrasada
nada é por inteirosomos só aparência
que disfarça
o desespero
sufoco,
estímulo zerado,
nada convoca,
nenhum corpo convida,
as carnes parecem mortas,
os olhos, esquecidos.
páginas em branco.
viradas. reviradas.
desvividas.
quero de volta minha inocência!
meu riso fácil
meu andar desleixado
onde está o que me traduz?
aceito minha torpeza
(seca essência)
ora rock, ora roots
meus extremos dilacerados
curiosidades.
idade?
consumida pela imperfeição
ensaio encontros inevitáveis
com os loucos rumores
do desagravo:
da minha falta de fé,
da minha mudez débil,
da minha atroz vaidade
(vontade de poesia)
preencho linhas
por que estou
vazia
ou só pra entender o que passa
o que fica
o que marca
neste dia que se acaba
por nada.
furta-cor
uma tarde de línguas assanhadas
que se metem uma na outra
como a madrugada,
furtiva,
se mete na manhã
e a manhã na tarde
mudando tudo de cor
esta tarde úmida
de corpo trêmulo
por baixo da roupa
luz indireta
confissões delongadas
e dedos prolongados
dentes de borracha
(pudesse eu decifrar tua saliva!)
fuzo de carinho,
passos de dança a irradiar
um cheiro de tesão...
depois, tudo vira poesia
duas crianças
sem rumo
por que a noite é incoerente
e livre demais
pra nos manter juntos
uma tarde de línguas assanhadas
que se metem uma na outra
como a madrugada,
furtiva,
se mete na manhã
e a manhã na tarde
mudando tudo de cor
esta tarde úmida
de corpo trêmulo
por baixo da roupa
luz indireta
confissões delongadas
e dedos prolongados
dentes de borracha
(pudesse eu decifrar tua saliva!)
fuzo de carinho,
passos de dança a irradiar
um cheiro de tesão...
depois, tudo vira poesia
duas crianças
sem rumo
por que a noite é incoerente
e livre demais
pra nos manter juntos
11.9.05
Nublada
Fiquei satisfeita ao acordar e ver tudo nublado no céu.
Pensei que, quem sabe assim me desfaço da vontade rompante de ir atrás do primeiro raio de sol.
Sorri ao pensar que, afinal, o amor é assim mesmo.
Trôpego.
Embalado por este gosto ébrio na língua.
Sorri por que chorei na noite anterior.
E chorar era tudo que queria.
Uma vontade que sentia inteira.
De me chover. De me lavar de mim.
Me livrar da renúncia contida.
Seja o mais feliz que puder, eu te disse.
Falava com o coração.
Repito.
Repito.
Embora minha vontade fosse
Escorregar contigo pelos feixes de luz mundo afora.
Este mundo que agora é nublado.
As minhas coisas mais verdadeiras, eu te dei.
As palavras mais íntimas, foram prá ti.
Meus não-seis, dividi todos contigo.
Aprendi que tem coisas que é muito importante que se repita
Pra atenuar a insegurança do outro.
Minha própria insegurança.
É melhor pecar por excesso do que por omissão,
Ouvi de ti certa vez.
São portas entre a gente.
Mais ou menos abertas. Mais ou menos fechadas.
Eu gosto de te ter perto. Perto de verdade.
Sem pesares.
Ao redor.
Eu continuo acreditando.
Embora não tenha créditos pra te dar.
Embora eu não possa te dar o que precisas.
Nem possa ter de ti o que desejo.
Eu te tenho nos olhos.
E te dedico tudo que há em volta.
Te desejo.
Te desejo a vida.
Por que, afinal, o amor é este.
É assim mesmo.
Trôpego.
Fiquei satisfeita ao acordar e ver tudo nublado no céu.
Pensei que, quem sabe assim me desfaço da vontade rompante de ir atrás do primeiro raio de sol.
Sorri ao pensar que, afinal, o amor é assim mesmo.
Trôpego.
Embalado por este gosto ébrio na língua.
Sorri por que chorei na noite anterior.
E chorar era tudo que queria.
Uma vontade que sentia inteira.
De me chover. De me lavar de mim.
Me livrar da renúncia contida.
Seja o mais feliz que puder, eu te disse.
Falava com o coração.
Repito.
Repito.
Embora minha vontade fosse
Escorregar contigo pelos feixes de luz mundo afora.
Este mundo que agora é nublado.
As minhas coisas mais verdadeiras, eu te dei.
As palavras mais íntimas, foram prá ti.
Meus não-seis, dividi todos contigo.
Aprendi que tem coisas que é muito importante que se repita
Pra atenuar a insegurança do outro.
Minha própria insegurança.
É melhor pecar por excesso do que por omissão,
Ouvi de ti certa vez.
São portas entre a gente.
Mais ou menos abertas. Mais ou menos fechadas.
Eu gosto de te ter perto. Perto de verdade.
Sem pesares.
Ao redor.
Eu continuo acreditando.
Embora não tenha créditos pra te dar.
Embora eu não possa te dar o que precisas.
Nem possa ter de ti o que desejo.
Eu te tenho nos olhos.
E te dedico tudo que há em volta.
Te desejo.
Te desejo a vida.
Por que, afinal, o amor é este.
É assim mesmo.
Trôpego.
Férias do tempo
Não tenho tempo pra nada!, ouve-se muito por aí. Agora mesmo o velho relógio na parede da sala segue em seu tique-taque, alheio a minha falta de tempo. O tempo conta as horas, segundos. O tempo conta história. Tempos. Estações. Desperdícios. O tempo come o almoço, o telefonema, o e-mail, o filme, planos, planilhas. O tempo come o amor. Devora até restos de momentos.
Para Arit Mética, 52, empresário, é inútil contar o tempo. “É preciso flutuar no tapete mágico do eterno aqui”, avalia.
“Só o passado bem passado, resolvido e consolidado, garante um presente firme”, defende Sue Lee, 24, torneiro mecânico e poeta.
Já Cati Langa, 16, estudante, vive em busca do futuro. “O futuro é incerto e isso me excita” explica.
O tempo escorre. Discorre sobre esta mistura viva de tudo ou nada.
“`As vezes, quando vejo, o dia acabou, então é dormir e começar tudo de novo amanhã” conta a dona de casa Parafer Nália, 39. Segundo ela, o tempo nos engana. É uma desculpa que a gente arranja. "Pra encobrir a necessidade de nos dedicarmos àquilo que mais gostamos", conclui.
Talvez Parafer esteja certa. Talvez tenhamos que usar a intensidade como subterfúgio à falta de tempo. Quem sabe a gente se dá aos agoras, e esquece um pouco esta coisa de hora marcada, dentista, prazo de entrega, data de vencimento. Falar nisso, tem horas? Quantas horas ainda temos?
Não tenho tempo pra nada!, ouve-se muito por aí. Agora mesmo o velho relógio na parede da sala segue em seu tique-taque, alheio a minha falta de tempo. O tempo conta as horas, segundos. O tempo conta história. Tempos. Estações. Desperdícios. O tempo come o almoço, o telefonema, o e-mail, o filme, planos, planilhas. O tempo come o amor. Devora até restos de momentos.
Para Arit Mética, 52, empresário, é inútil contar o tempo. “É preciso flutuar no tapete mágico do eterno aqui”, avalia.
“Só o passado bem passado, resolvido e consolidado, garante um presente firme”, defende Sue Lee, 24, torneiro mecânico e poeta.
Já Cati Langa, 16, estudante, vive em busca do futuro. “O futuro é incerto e isso me excita” explica.
O tempo escorre. Discorre sobre esta mistura viva de tudo ou nada.
“`As vezes, quando vejo, o dia acabou, então é dormir e começar tudo de novo amanhã” conta a dona de casa Parafer Nália, 39. Segundo ela, o tempo nos engana. É uma desculpa que a gente arranja. "Pra encobrir a necessidade de nos dedicarmos àquilo que mais gostamos", conclui.
Talvez Parafer esteja certa. Talvez tenhamos que usar a intensidade como subterfúgio à falta de tempo. Quem sabe a gente se dá aos agoras, e esquece um pouco esta coisa de hora marcada, dentista, prazo de entrega, data de vencimento. Falar nisso, tem horas? Quantas horas ainda temos?
Badanha
A melodia fúnebre funde-se ao vento forte e quente. Árvores envergam-se ao limite enquanto sinos anunciam o meio dia. Flores acompanham pequenos redemoinhos de ar, protagonistas de um espetáculo raro e cotidiano da natureza: a cerimônia que antecede milagrosas chuvas de verão.
Estirado sobre o capim, Badanha sente as primeiras gotas caírem pesadas sobre sua face redonda. O velho gaudério, porteiro e zelador do cemitério, acordou num sobressalto, levantou e correu desatinado ao ouvir o blim-blom dos sinos da igreja (que afirmava que estava atrasado). Com o resto de memória que lhe restou depois do sucedido na noite anterior, lembrou que havia um velório marcado às treze horas daquele dia. Chegou à capela com as vistas ofuscadas pela poeira do temporal, ofegante, encharcado.
A música cessou. Bebendo o corpo, somente senhoras que, ao ver Badanha, gritaram horrorizadas, uníssonas:
- Seu safado! Sem-vergonha! Tarado!
Badanha, atônito, quis saber:
- Ma que entrevero todo é êsse? Io no sabia que se atrasar era pecado grande!
As beatas gritavam, olhando escandalizadas para o homem.
- Já sei! Mas son tudo un bando de fofoquera mesmo! Nun tem o mínimo de respeito pela vida dos otro. Já andaram tricotando por aí pra descobri os ocorrido. Má vá. Son tudo umas lavadera que num tem o que fazê vem pra cá fingi que ton velando e só ficon é fofo...
As mulheres estavam estáticas. Mantinham os olhos paralisados sobre o zelador. Badanha intimidou-se e desviou do delas o seu olhar. Foi aí que percebeu que, salvo as meias e as botas, estava completamente nu. Enrubresceu. Enrouxou, até. Pediu licença às senhoras, tomou um ramo de flores que jaziam sobre o morto e antes de sair, disfarçou puritano:
- No há nada mais puro que correr como se veio ao mundo, na companhia dos bons espíritos, sendo banhado com esta água sagrada que brota do céu. Até mais ver.
Tentou, inutilmente, fazer graça com o chapéu que costuma e imaginava estar e saiu.
A chuva secou. Desenchavido da vida, sem pensar em mais nada a não ser na burrada que havia cometido naquela madrugada, Badanha caminha balançante e nu pelo cemitério sem perceber os olhares curiosos que atraía. A casa do velho Badanha ficava ali mesmo, dentro do vasto terreno do cemitério. Uma área de flores e muita gente morta. Mas não podia ir pra casa. Lembrou-se então de dona Custódia, vizinha dos fundos, e teve uma idéia.
Chegou sorrateiro, pulou a cerca e lá estava o que procurava. O varal de dona Custódia. Murmurou sozinho:
- Ma eu sô un azarado! Por qual desgraça minha única vizinha tinha que ser viúva? Pelo menos é gorda como eu, essa cara!
Sem exitar, arrancou com uma só mão o vestido rosa. Os prendedores de roupa voaram alto, longe, e caíram fortemente sobre o telhado da vizinha. Dona Custódia quis saber o que acontecia e, ao sair, avistou o homem de costas, já pulando a cerca de volta. De espingarda em punho, Custódia foi anunciando:
- Pega ladrão! Pega ladrão!
Filhos, netos, pais, irmãos, tios e amantes de gente morta que rezavam ali, de joelhos, por seus queridos, levantaram-se num só corpo e saíram à caça do misterioso ladrão. Badanha corria sem parar. Veloz e alucinado. Tanto que quando percebeu já não estava mais no cemitério e não havia mais ninguém atrás dele.
- Ufa! Ma qüesta gente é tudo douda mesmo!
Por onde passava todos apontavam e riam de Badanha, que a esta altura da caminhada já estava no centro da cidade. Foi buscar consolo com o amigo Juca, dono da funerária Enfim, merece flores, que ficava nas redondezas. De longe, Juca mirava o comprade com olhar debochado.
- O que foi que aprontaste desta vez, homem? Ou está antecipando o carnaval? Mil fantasias, heim!
- Nun brinca Juca! É cousa muito séria o que me aconteceu.
- Mas então desembuche, cumpadre!
- Enton, tu me conhece faz bastante anos e sabe que sou dado às...As, aos..., Aa...
- Às aventuras da noite não é? Andaste visitando as chinas da dona Bordô novamente, não é?
- Magina Juca! Io só tava passando e...sabe como e, né?
- Não resistiu. Tu não tem jeito mesmo, heim! Pobre da tua mulher!
- Vá bene, cumpade Juca. Mas se fosse tu que passasse o dia inteirinho lidando cuns morto, chegasse em casa e visse tua dona saindo do banho, cuns creme na cara, parecendo até fantasma, toda peladona, com o corpo amarrotadon, aí tu me dava razão.
Juca ia fazer piada mas ao perceber a fisionomia procupada do amigo limitou-se a ouvi-lo.
- E o que aconteceu depois Badanha?
- Enton, saí pra me advertir un poquinho, me passei no trago e fiz uma baita estrago. O meu azar foi que quando cheguei em casa a prenda me esperava com o rolo de pão na mão. Non é que a douda da Marilda me punhou pra fora do pago! Me deixo sem pilcha nem nada, me esbofetiô, me chingô e me espanco até que não pudesse mais guentá! Me disse pra eu nunca mais vortá. Que queria me ver morto-com-a-boca-seca-cheia-de-formiga. Que se eu não saísse ela mesma iria cavá meu túmulo. Fiquei mais perdido que cusco sem dono e depois disso eu só me alembro de acordá com a chuva e ...
Badanha contou à Juca tudo o que aconteceu até chegar ali, no modelito dona Custódia. Acostumado com as trapalhadas do amigo, Juca concentrava-se para não rir.
- Mas no que posso te ajudar?
- Enton....Tu sabe que qui io so loco por aquela xina. Tu sabe que ela tem um gênio de cão e talvez nunca mais me queira ao seu lado. Tu sabe que só de pensar nisso io fico todo repiado. Entonces, é vero ou não?
- É verdade o quê, Badanha?
- Que tu me empresta un caixon, anuncia minha morte, chama minha Marilda, me joga na cova funda e me deixa largado à sorte?
- Espere aí! Deixe-me ver se entendi. Tu queres que eu finja que tu estás morto?
- Non! Cáspita! Quem vai fingi sô eu. Tu só espraia a notícia!
- Não sei não. Acho que isto não vai cabar bem...
- Ma num se fazem mais cumpadre como antigamente. Agora são tudo uns froxo!
- Ah! Está bem! Mas antes vá comprar uma roupa decente. Tu sabes onde fica o atelier do Ramiro. Vá até lá e encomende uma roupa pra morrer com um pouco mais de dignidade. Pode colocar o valor na minha conta.
- Enton te vejo mais tarde. E saiu porta afora.
Enquanto escolhia o caixão para o amigo, Juca lembrou que Ramiro havia mudado de lugar. Como fazia tempo que Badanha não aparecia na cidade, não devia saber. Correu até a porta para indicar o novo endereço, mas já não avistava mais o amigo.
No lugar do atelier funcionava agora o Fórum Municipal. Mas como àquela hora devia estar fechado, Badanha não teria como arranjar confusão. Dali meia hora Badanha volta irritadíssimo e esbraveja:
- Ma é um burro cretino aquele custurero de meia tigela!
- Mas então você encontrou o atelier?
- Ma que encontrei porcaria nenhuma! Ma me chego lá e vejo as porta tudo trancada, com uns letrero grande dizendo que “forun”. Ora esta! Ma que fórum eu vi, ma fórum pra onde? Alfaiate maldito! Magine! Enton por que nun colocô o endereço novo?
Juca gargalhava alto. Badanha não entendeu nada.
- Ma qual a graça? Agora vô te que ser enterrado de vestido.
- A gente dá um jeito. Coloca umas flores por cima...
- Vá bene. Entonces vamu dar início aos combinado!
Comparecimento em massa no seu enterro. Badanha imóvel, deitado em seu caixão. O povo todo de mãos dadas numa corrente de fé. As histórias sobre São Badanha multiplicavam-se por segundo. Veio gente de longe para fazer pedidos. Badanha teve que ouvir confissões e promessas:
- São Badanha, por favor, me ajude! Prometo que venho até aqui trazer flores e velas para o senhor todos os domingos, nos próximos quatorze anos se não permitir que meu marido descubra minha traição. Oh São Badanha eu lhe serei eternamente agradecida.
As beatas:
- Senhor Badanha, perdoe-nos pela agressividade de hoje cedo. Rezaremos por sua alma até o fim de...
E blá, blá, blá, blá. Badanha não suportava mais tamanha ladainha. Até que, ao lado de Juca, com desespero no olhar, chega a pessoa mais aguardada do enterro. A viúva. Fez-se silêncio na capela. Só ficou a prece morosa de Marilda, que não continha-se de remorso desde de que soube que seu marido havia morrido de dor de amor.
- Oh! Meu bom Deus! Eu faria qualquer coisa para ter meu Badanha de volta. O senhor deveria saber que não era de coração quando desejei sua morte. Prometo nunca mais brigá com ele. Ressucite-o, meu bom Deus.
O povo rezava:
- Ressucite-o! Ressicite-o!
De olhos cerrados, Badanha começou a tremer no caixão. Marilda, desesperada, continuou:
- Nunca mais reclamarei do seu hálito ou ronco, nem da mania de sair pra beber com os amigos....Por favor, Deus, traga-o de volta! Traga meu Badanha pra mim!
Então, milagrosamente, Badanha, aos poucos, ergue-se do túmulo. Os fiéis ajoelham-se. Antes de abrir as pálpebras, Badanha arrisca uma última pergunta à esposa. Forçando o timbre, fala em alto tom. Um porta-voz de Deus:
- E quanto a casa de dona Bordô?
- Ah! Meu pai! Aí já é demais, não?
Badanha ensaia a volta ao túmulo, quando se ouve:
- Ta bem. Ta bem. Se o Senhor me devolver meu Badainha eu prometo não implicar com mais nada!
- Nada mesmo? – quis saber com voz de trovoada.
- Nada! Nada! Nada! – berrava Marilda aos prantos.
E como num plin!, eureca! ou passe de mágica, Badanha saiu lentamente do túmulo. Sacudiu a cabeça, apalpou-se com as mãos, abriu os olhos e fez-se de tonto.
- Ma que ta se sucedendo aqui?
- Milagre! Aleluia!
- Ma que fuzuê é queste em mio cemitério?
Algumas pessoas desmaiaram. Marilda abrçou Badanha com todo seu amor. Pediu-lhe perdão e agradeceu à Deus. Badanha avistou o amigo Juca rindo sozinho, mandou-lhe uma piscadela de canto de olho e foi saindo de mãos dadas com a esposa, passando entre os devotos que continuavam a gritar:
A melodia fúnebre funde-se ao vento forte e quente. Árvores envergam-se ao limite enquanto sinos anunciam o meio dia. Flores acompanham pequenos redemoinhos de ar, protagonistas de um espetáculo raro e cotidiano da natureza: a cerimônia que antecede milagrosas chuvas de verão.
Estirado sobre o capim, Badanha sente as primeiras gotas caírem pesadas sobre sua face redonda. O velho gaudério, porteiro e zelador do cemitério, acordou num sobressalto, levantou e correu desatinado ao ouvir o blim-blom dos sinos da igreja (que afirmava que estava atrasado). Com o resto de memória que lhe restou depois do sucedido na noite anterior, lembrou que havia um velório marcado às treze horas daquele dia. Chegou à capela com as vistas ofuscadas pela poeira do temporal, ofegante, encharcado.
A música cessou. Bebendo o corpo, somente senhoras que, ao ver Badanha, gritaram horrorizadas, uníssonas:
- Seu safado! Sem-vergonha! Tarado!
Badanha, atônito, quis saber:
- Ma que entrevero todo é êsse? Io no sabia que se atrasar era pecado grande!
As beatas gritavam, olhando escandalizadas para o homem.
- Já sei! Mas son tudo un bando de fofoquera mesmo! Nun tem o mínimo de respeito pela vida dos otro. Já andaram tricotando por aí pra descobri os ocorrido. Má vá. Son tudo umas lavadera que num tem o que fazê vem pra cá fingi que ton velando e só ficon é fofo...
As mulheres estavam estáticas. Mantinham os olhos paralisados sobre o zelador. Badanha intimidou-se e desviou do delas o seu olhar. Foi aí que percebeu que, salvo as meias e as botas, estava completamente nu. Enrubresceu. Enrouxou, até. Pediu licença às senhoras, tomou um ramo de flores que jaziam sobre o morto e antes de sair, disfarçou puritano:
- No há nada mais puro que correr como se veio ao mundo, na companhia dos bons espíritos, sendo banhado com esta água sagrada que brota do céu. Até mais ver.
Tentou, inutilmente, fazer graça com o chapéu que costuma e imaginava estar e saiu.
XXXX
A chuva secou. Desenchavido da vida, sem pensar em mais nada a não ser na burrada que havia cometido naquela madrugada, Badanha caminha balançante e nu pelo cemitério sem perceber os olhares curiosos que atraía. A casa do velho Badanha ficava ali mesmo, dentro do vasto terreno do cemitério. Uma área de flores e muita gente morta. Mas não podia ir pra casa. Lembrou-se então de dona Custódia, vizinha dos fundos, e teve uma idéia.
Chegou sorrateiro, pulou a cerca e lá estava o que procurava. O varal de dona Custódia. Murmurou sozinho:
- Ma eu sô un azarado! Por qual desgraça minha única vizinha tinha que ser viúva? Pelo menos é gorda como eu, essa cara!
Sem exitar, arrancou com uma só mão o vestido rosa. Os prendedores de roupa voaram alto, longe, e caíram fortemente sobre o telhado da vizinha. Dona Custódia quis saber o que acontecia e, ao sair, avistou o homem de costas, já pulando a cerca de volta. De espingarda em punho, Custódia foi anunciando:
- Pega ladrão! Pega ladrão!
Filhos, netos, pais, irmãos, tios e amantes de gente morta que rezavam ali, de joelhos, por seus queridos, levantaram-se num só corpo e saíram à caça do misterioso ladrão. Badanha corria sem parar. Veloz e alucinado. Tanto que quando percebeu já não estava mais no cemitério e não havia mais ninguém atrás dele.
- Ufa! Ma qüesta gente é tudo douda mesmo!
Por onde passava todos apontavam e riam de Badanha, que a esta altura da caminhada já estava no centro da cidade. Foi buscar consolo com o amigo Juca, dono da funerária Enfim, merece flores, que ficava nas redondezas. De longe, Juca mirava o comprade com olhar debochado.
- O que foi que aprontaste desta vez, homem? Ou está antecipando o carnaval? Mil fantasias, heim!
- Nun brinca Juca! É cousa muito séria o que me aconteceu.
- Mas então desembuche, cumpadre!
- Enton, tu me conhece faz bastante anos e sabe que sou dado às...As, aos..., Aa...
- Às aventuras da noite não é? Andaste visitando as chinas da dona Bordô novamente, não é?
- Magina Juca! Io só tava passando e...sabe como e, né?
- Não resistiu. Tu não tem jeito mesmo, heim! Pobre da tua mulher!
- Vá bene, cumpade Juca. Mas se fosse tu que passasse o dia inteirinho lidando cuns morto, chegasse em casa e visse tua dona saindo do banho, cuns creme na cara, parecendo até fantasma, toda peladona, com o corpo amarrotadon, aí tu me dava razão.
Juca ia fazer piada mas ao perceber a fisionomia procupada do amigo limitou-se a ouvi-lo.
- E o que aconteceu depois Badanha?
- Enton, saí pra me advertir un poquinho, me passei no trago e fiz uma baita estrago. O meu azar foi que quando cheguei em casa a prenda me esperava com o rolo de pão na mão. Non é que a douda da Marilda me punhou pra fora do pago! Me deixo sem pilcha nem nada, me esbofetiô, me chingô e me espanco até que não pudesse mais guentá! Me disse pra eu nunca mais vortá. Que queria me ver morto-com-a-boca-seca-cheia-de-formiga. Que se eu não saísse ela mesma iria cavá meu túmulo. Fiquei mais perdido que cusco sem dono e depois disso eu só me alembro de acordá com a chuva e ...
Badanha contou à Juca tudo o que aconteceu até chegar ali, no modelito dona Custódia. Acostumado com as trapalhadas do amigo, Juca concentrava-se para não rir.
- Mas no que posso te ajudar?
- Enton....Tu sabe que qui io so loco por aquela xina. Tu sabe que ela tem um gênio de cão e talvez nunca mais me queira ao seu lado. Tu sabe que só de pensar nisso io fico todo repiado. Entonces, é vero ou não?
- É verdade o quê, Badanha?
- Que tu me empresta un caixon, anuncia minha morte, chama minha Marilda, me joga na cova funda e me deixa largado à sorte?
- Espere aí! Deixe-me ver se entendi. Tu queres que eu finja que tu estás morto?
- Non! Cáspita! Quem vai fingi sô eu. Tu só espraia a notícia!
- Não sei não. Acho que isto não vai cabar bem...
- Ma num se fazem mais cumpadre como antigamente. Agora são tudo uns froxo!
- Ah! Está bem! Mas antes vá comprar uma roupa decente. Tu sabes onde fica o atelier do Ramiro. Vá até lá e encomende uma roupa pra morrer com um pouco mais de dignidade. Pode colocar o valor na minha conta.
- Enton te vejo mais tarde. E saiu porta afora.
Enquanto escolhia o caixão para o amigo, Juca lembrou que Ramiro havia mudado de lugar. Como fazia tempo que Badanha não aparecia na cidade, não devia saber. Correu até a porta para indicar o novo endereço, mas já não avistava mais o amigo.
No lugar do atelier funcionava agora o Fórum Municipal. Mas como àquela hora devia estar fechado, Badanha não teria como arranjar confusão. Dali meia hora Badanha volta irritadíssimo e esbraveja:
- Ma é um burro cretino aquele custurero de meia tigela!
- Mas então você encontrou o atelier?
- Ma que encontrei porcaria nenhuma! Ma me chego lá e vejo as porta tudo trancada, com uns letrero grande dizendo que “forun”. Ora esta! Ma que fórum eu vi, ma fórum pra onde? Alfaiate maldito! Magine! Enton por que nun colocô o endereço novo?
Juca gargalhava alto. Badanha não entendeu nada.
- Ma qual a graça? Agora vô te que ser enterrado de vestido.
- A gente dá um jeito. Coloca umas flores por cima...
- Vá bene. Entonces vamu dar início aos combinado!
Então Juca, como era de costume quando alguém importante morria na cidade, saiu de carro anunciando no alto-falante. “É com profunda tristeza e intenso pesar que a funerária Enfim, merece flores anuncia a perda de um notável homem desta comunidade. Faleceu, na última madrugada, do que os médicos diagnosticaram como dor de amor, o nosso querido Badanha. O velório será hoje mesmo, às...”
A notícia correu rápido. As beatas que haviam visto Badanha naquela manhã, depois, então, da sua morte, tinham-no agora como um santo. Diziam-se abençoadas por terem visto a figura do homem. Esqueceram os desaforos. Lembravam-se apenas da “doce” expressão ao dizer: “No há nada mais puro que correr como se veio ao mundo...”Ah! Agora podiam compreender ao que se referia o porteiro. E, como boas beatas que eram, trataram de passar o ocorrido adiante. O plano de Badanha começava a dar certo.
A notícia correu rápido. As beatas que haviam visto Badanha naquela manhã, depois, então, da sua morte, tinham-no agora como um santo. Diziam-se abençoadas por terem visto a figura do homem. Esqueceram os desaforos. Lembravam-se apenas da “doce” expressão ao dizer: “No há nada mais puro que correr como se veio ao mundo...”Ah! Agora podiam compreender ao que se referia o porteiro. E, como boas beatas que eram, trataram de passar o ocorrido adiante. O plano de Badanha começava a dar certo.
XXXX
Comparecimento em massa no seu enterro. Badanha imóvel, deitado em seu caixão. O povo todo de mãos dadas numa corrente de fé. As histórias sobre São Badanha multiplicavam-se por segundo. Veio gente de longe para fazer pedidos. Badanha teve que ouvir confissões e promessas:
- São Badanha, por favor, me ajude! Prometo que venho até aqui trazer flores e velas para o senhor todos os domingos, nos próximos quatorze anos se não permitir que meu marido descubra minha traição. Oh São Badanha eu lhe serei eternamente agradecida.
As beatas:
- Senhor Badanha, perdoe-nos pela agressividade de hoje cedo. Rezaremos por sua alma até o fim de...
E blá, blá, blá, blá. Badanha não suportava mais tamanha ladainha. Até que, ao lado de Juca, com desespero no olhar, chega a pessoa mais aguardada do enterro. A viúva. Fez-se silêncio na capela. Só ficou a prece morosa de Marilda, que não continha-se de remorso desde de que soube que seu marido havia morrido de dor de amor.
- Oh! Meu bom Deus! Eu faria qualquer coisa para ter meu Badanha de volta. O senhor deveria saber que não era de coração quando desejei sua morte. Prometo nunca mais brigá com ele. Ressucite-o, meu bom Deus.
O povo rezava:
- Ressucite-o! Ressicite-o!
De olhos cerrados, Badanha começou a tremer no caixão. Marilda, desesperada, continuou:
- Nunca mais reclamarei do seu hálito ou ronco, nem da mania de sair pra beber com os amigos....Por favor, Deus, traga-o de volta! Traga meu Badanha pra mim!
Então, milagrosamente, Badanha, aos poucos, ergue-se do túmulo. Os fiéis ajoelham-se. Antes de abrir as pálpebras, Badanha arrisca uma última pergunta à esposa. Forçando o timbre, fala em alto tom. Um porta-voz de Deus:
- E quanto a casa de dona Bordô?
- Ah! Meu pai! Aí já é demais, não?
Badanha ensaia a volta ao túmulo, quando se ouve:
- Ta bem. Ta bem. Se o Senhor me devolver meu Badainha eu prometo não implicar com mais nada!
- Nada mesmo? – quis saber com voz de trovoada.
- Nada! Nada! Nada! – berrava Marilda aos prantos.
E como num plin!, eureca! ou passe de mágica, Badanha saiu lentamente do túmulo. Sacudiu a cabeça, apalpou-se com as mãos, abriu os olhos e fez-se de tonto.
- Ma que ta se sucedendo aqui?
- Milagre! Aleluia!
- Ma que fuzuê é queste em mio cemitério?
- Aleluia! Milagre! Aleluia!
4.9.05
Eu ouço muito Elis
( ou "não há nada a temer, exceto as palavras")
Foi sincero. Foi brutalmente sincero, eu diria. Tu ignoras metade das coisas, eu falei muito fina, quase solene, com aquele refinamento que a maturidade traz. (O deboche é herança genética. Quase nunca consigo evitar). E nada como ter auto-estima, não é mesmo? E um certo compromisso com a evolução da humanidade. O comprometimento que não nos permite pendurar explicações acerca de desconfiança e ciúmes, por exemplo.
Ora, por que desconfiança e ciúmes são pura insegurança. E insegurança é um probleminha, sabe? Um probleminha que merece ser resolvido imediatamente. Pra gente não perder tempo, pra gente não perder vida. Pra sair logo desta lama e ter o dia inteiro pra ser feliz. É. Ser feliz sim, e daí?
Sabe, dia destes eu pensava que preciso urgentemente viver no mínimo até os 90 e poucos anos. Que historicamente não somos nada. Que a vida de ninguém representa um cisco na linha ac. dc. Somos mesmo tão ínfimos. Temos pressa. Logo, relacionamentos baseados na insegurança, nem pensar. Não dá tempo.
XXXX
Eu poluía o ambiente com sonhos. Eu sou uma mulher que nasce da ferida, afinal. Por que não criaria fantasias, alguém me responde? Alguém pode? Uma única pessoa, por acaso, sabe? Limpei-me da dor do amor. Quem me olhava tensa, amargamente só, comigo, quem me olhava, escancarava na pupila que coitada, parecia, tinha um jeito, de um animalzinho preso na armadilha. Arapuca. Uma cadelinha, um passarinho, afundando-se cada vez mais. Sufocada. Nadando em sangue. Cega da beleza.
Eu engoli tanto. Tanta saliva, eu engoli. Suor, ofensas, amor inquieto, eu engoli. Engoli, veja só, que sou pura instabilidade. Que paira sobre mim um lirismo, uma coisa assim...exageradamente lúdica. Sim, eu tenho muitos desejos. Multiplico identidades. Sou cheia de mim! Tenho vácuo de mim!
XXXX
Por vezes, a beleza das coisas me parece assustadora. Eu acordo com uma sensação de desperdício. Uma sensação do imã, um imã às avessas, que repele minha carne, minha carne que não se esfrega contra tua carne. Eu quero a paz interior! Mas, por favor, meu bem, não me leve tão a sério. Eu não preciso satisfazer tudo. Tu não sabes. Eu te disse. Tu não sabes. Semântica? Dane-se! A vida é celebração.
Estão todos tão alterados, que até meu humor parece constante. Eu ainda não chorei por ti. É bem no estômago que te sinto. E tenho febre quando, na escuridão, pesquiso com a memória o teu corpo. Depois desperto vazia, deitada na noite, com a voz da Elis ecooando pelo apartamento.
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