29.5.07

Ser só, pra ser junto>
Ficar só é um exercício de convivência, uma situação na qual nos submetemos a nós mesmos. É quando a gente descobre o que realmente nos agrada e nos incomoda. Não sei se é assim com todo mundo mas, quanto a mim, não consigo organizar tudo que vivo enquanto vivo. Ser eu é difícil.

Tem gente que precisa de estímulos externos o tempo todo. Alguns conseguem viver e organizar a vida sumultâneamente. Já outros, como eu, precisam de um tempo isolados para pensar nos seus passos (oxalá! as diferenças, afinal).

Considero o mundo tão vasto e dinâmico, que temo me perder por seus becos. Me preocupo em tomar decisões acertadas, em ser sincera comigo. Não tenho lá muitos sonhos, destes que algumas pessoas têm, de coisas concretas. Um futuro rural? Quem sabe meia dúzia de filhos?

O que eu vim fazer aqui é ser feliz. Essa é uma das minhas poucas certezas e a questiono desde sempre. Pouco importa de que maneira e em qual lugar, quero me sentir confortável dentro do meu corpo e ser honesta nas minhas escolhas (e as renúncias?).

É complicadinho. Ao mesmo tempo que somos livres pra eleger nosso rumo, vivemos sob a égide das poucas opções. Há que pagar o aluguel, a comida, o transporte, se divertir, empreender... Tudo passa tão rápido que se a gente não parar um pouco e refletir, já era.

Érico Veríssimo acreditava que "felicidade é a certeza de que a vida não está passando inutilmente." Eu demorei algum tempo para entender essa frase, mas entendi. Considerava uma ambição rala a de desejar uma vida tão apenas 'útil'. Hoje sinto na pele o quão é difícil alcançar a sensação de que os dias, os relacionamentos e o trabalho estão sendo, de alguma forma, proveitosos.

Proveito no sentido mais íntimo que isso possa ter pra cada ser humano. Pra mim, é esta coisa de me olhar no espelho e me reconhecer, saber exatamente quem sou e até onde vou. Meus valores pessoais podem não representar nada para ninguém mas se eu acredito neles e vivo orientada por eles, basta. É claro que mudo de idéias e de ideais, bastante até. Aliás, me incomoda esta rigidez moral que não admite a contradição.

Mas tem coisas em mim que não se corrompem, aconteça o que acontecer. É o caso da minha crença no amor como a maior força transformadora da vida. Por isso, amo. Amo apesar da distância, amo embora não seja correspondida, amo sem querer nada em troca. Amar por si só já é uma restituição, por que é inesgotável, não acaba nunca. Jamais deixei de amar alguém por quem tenha conhecido essa afeição.

Acontece que o amor é sempre constelado por outros sentimentos, como amizade ou desejo, por exemplo. E feito o universo essas estrelas mudam de lugar e dão espaço a outras, como a admiração e a solidariedade. Penso que o respeito é o único aspecto que nunca abandona o amor, sob qualquer circunstância.

Então, embora eu passe fases assim, inebriada com meus botões, e esqueça de procurar os amigos ou telefonar para a família, de responder e-mails ou escrever cartas, não deixo de meditar profundamente sobre a relação que mantenho com cada um deles.

São nesses momentos, de extrema solidão - na concepção mais benévola que essa palavra possa ter - que reforço meus laços com a experiência que mantemos juntos, eu e minha gente amada. São instantes indispensáveis, nos quais reúno todas quem sou e procuro, solitária, ser uma companhia melhor para conviver com todos que amo. E os que ainda hei de amar.
arte contemporânea...
.


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... no pilotis do meu prédio
(eu moro num lugar underground, saca?)

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26.5.07

mais cartão:
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furta-cor
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uma tarde de línguas assanhadas
que se metem uma na outra
como a madrugada, furtiva,
se mete na manhã
e a manhã na tarde
mudando tudo de cor...

esta tarde úmida de corpo
trêmulo por baixo da roupa
luzes indiretas
confissões delongadas
dedos prolongados
e dentes de borracha
a mordiscar, bem sei-os.

fuzo de carinho e passos de dança
irradiam cheiros de desejo!
depois, tudo vira poesia
duas crianças sem rumo
por que a noite é incoerente
e livre demais
pra nos manter juntos...
blogosfera licorosa

aqui.

25.5.07

andarilha




Caminhar é uma das minhas atividades mais queridas. Ando muito por aí. Às vezes atenta ao mundo lá fora, noutras enfurnada nos meus pensamentos. Gosto de retomar os últimos acontecimentos, formular respostas que nunca dei a perguntas que nunca me fizeram. Ou pensar em como poderia ter me portado diferente em alguma situação que vivi. Quase me arrependo e resmungo sozinha as palavras que me faltaram naquela hora.

No meu passeio, quase todas as árvores parecem mulheres de cabeça pra baixo, plantando bananeira. Tem umas bem magrinhas, outras de coxas bem feitas. E há também as flores rosas, amarelas, roxas, secas, camaleoas.

Me encanta dar alguns passos de queixo apontado pro céu. Me entreto com brincadeiras infantis, como enquadrar as nuvens em coisas - coisas referenciais aos humanos. Então elas viram ursos, aviões, castelos, cirandas. Mesmo as nuvens que não se parecem com nada são parecidas com pipocas.
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Da calçada vejo também tetos de apartamentos. Repara, tem muito teto exótico por aí. Cheios de coisas penduradas, pintados de vermelho e até um com arte em xadrez. Há crianças em muitas janelas. E ouve-se conversas, principalmente discussões: "Por que você não vai embora? Não mude de assunto, eu quero saber por que você mentiu pra mim." Todo mundo é tão igual em algumas situações, né não?

E tem cada plaquinha despropositada, mais até do que estas frases que a gente encontra em portas de banheiros públicos. Dia destes li "faço pé e mão bem feitos 99X2.8X01", escrito com esmalte bordô no banco de uma pracinha. Achei tão criativo que quase liguei.

Os pequenos, de 2, 5, 8 anos são os mais simpáticos. Sorriem e sentem vergonha. E os meninos adolescentes, com cabeça, pés e mãos desproporcionais ao resto do corpo, são os mais engraçados. Alguns são tão tímidos que parecem desconfortáveis só por existirem ou pelo fato de os outros perceberem que eles existem. Gosto de sustentar o olhar de alguns transeuntes (são raras as pessoas que se olham nos olhos) e de cumprimentar desconhecidos.

Sempre que posso vou a pé. É minha forma de viver um romance com a cidade, ficar íntima do seu cotidiano. Descobrir lugarzinhos secretos, escutar o movimento da população, sentir cheiros de sono, pressa, tristeza... Perceber o tempo com forma e espaço. Respiro. Brinco de respirar: mais devagar, profundamente, duas inspiradas pra cada expirada. E, assim, me divirto sozinha comigo. Um pé atrás do outro, um passo de cada vez. Vendo a vida a andar.
blogosfera mascarada

aqui.
metamorfose ambulante:

no lugar onde eu estudo há uma catraca que só gira mediante o reconhecimento de digitais. toda noite é a mesma coisa: meu dedo não é admitido e fico presa do lado de fora. aí vem o funcionário simpático e me libera. sempre lembro da música do raulzito. e me pergunto: será que eu sou mutante?

23.5.07

fer e nanda: sempre fazendo arte

eu pinto cartões desde a adolescência, mas até hoje eles embalam, coloridamente, longas horas de alguns dos meus dias. é um recreio solitário, que antes eu dividia com a fer. são desenhos simples, infantis até, com pedacinhos de poesia colecianados há quase 15 anos. são frases. são fases, afinal. tudo feito à mão, com muito desvelo. a partir de agora, vou postar uns aqui. eis o primeiro:

fugir no meio do baile
tirar a roupa
te ler em braile
tudo de novo

ontem zerei o contador do blog.
também limpei caixas de e-mail
e joguei toneladas de bits fora.
é uma questão de estado de espírito, afinal...
vamos lá, o show está sempre por começar:
a diplomacia dos cosméticos:

condicionador para cabelos indisciplinados, leite de colônia para facilitar a respiração da pele, reparador de pontas para proteger contra a ação de agentes externos, removedor de esmalte a ser utilizado até que se consiga o resultado desejado e creme anti-rugas para melhorar a comunicação entre as células.

por fim, não esqueça: mantenha fora do alcance das crianças.

22.5.07

Chupando o dedo

.
Meu amor, pela manhã,
tem sabor de marzipã.

Antes de ir pra labuta,
ele tem teor de fruta.

Na hora do almoço,
mastigo este moço!

De volta pra casa,
meu homem vira brasa.

Se não o beijo, amola,
vira queijo gorgongola.

Depois, como resposta,
meu amor me dá as costas.

E passo toda a madrugada
sem sentir gosto de nada...

21.5.07

Vazio

No cabide do armário,
A camisa repousa,
Com saudade
Do teu cheiro.

Nas prateleiras,
As sandálias, empilhadas,
Cobiçam o calor nu
Dos teus pés.

No móvel da sala,
Teus cd’s emitem
Silêncio.

Foste embora...
Sem lamento.

Não ouso tocar tua camisa,
Nem calçar tuas sandálias,
Tampouco ouvir da tua música.

Mas, feito eu e tu, teimam...

À noite, praticam um culto:
Simulam teus passos,
Arrastam teu vulto
E cantam,
No vazio do apartamento.

20.5.07

Culpa do inverno

Era domingo e ela tinha um encontro. Ansiosa, saiu de casa três horas antes do combinado. Se encontrariam no final da tarde, num café, luz baixa e música ao vivo. "Clima perfeito para gente se conhecer melhor", ele disse. Não era bem o homem da sua vida mas, sei lá, era inverno e Mariana andava meio cansada daquela propensão intrínseca que ela tinha para se apaixonar em cada esquina.

Se conheceram na sexta-feira, numa festa. No dia seguinte, ela mal havia acordado quando o telefone tocou:

- Oi, é o Beto.
- Oi Beto.
- Então, bateu uma saudade. Gostei tanto de te conhecer.
- Sei. Eu também. Olha só, eu ainda nem escovei os dentes. Dá pra gente conversar outra hora?
- Claro! É que eu queria combinar de nos vermos.
- Tudo bem, a gente marca.
- Pode ser hoje?
- Hoje? Sabe o que é? Hoje não dá. É aniversário da minha avó.
- E amanhã?
- Amanhã é domingo!
- Que que tem?

Ele insistiu, ela ficou sem graça. Beto sugeriu o lugar, ela anotou o endereço. “Manda um abraço pra sua avó”, "tá, um beijo" e desligaram.

Mariana tinha uma regra pessoal para histórias de sucesso: nunca telefonar no dia seguinte. Mas fazia tanto frio no inverno de Porto Alegre que ela resolveu aceitar. No outro dia, sabe-se lá o por quê, Mariana ficou apreensiva. E se Beto fosse um daqueles caras que guarda tudo em caixinhas catalogadas? E se tivesse mania de se olhar nos vidros das vitrines? E se dormisse de meias? Mariana tinha horror a gente que dormia de meias. O beijo era bom, ela lembrava. Resolveu arriscar.

Mas ainda faltavam duas horas para o encontro e ela estava ali, perambulando pelo centro da cidade. Entreteu-se com o cartunista. Olhou o artesanato dos hippies. Comeu churros. Parou em frente ao cartaz. O filme já havia começado há dez minutos. É o tempo do trailler, pensou. Comprou o ingresso e se enfiou no escuro do cinema. Sala semi-lotada.

Sentou-se na primeira fileira, pra não ter que pedir licença nem atrapalhar ninguém. Ô lugarzinho mais desconfortável, quase colado na tela. Acomodou-se de modo a evitar o risco de fazer gargarejos com a própria saliva, tamanha a envergadura do pescoço. Bib’s em punho, o filme era o que ela precisava: divertido, envolvente. O público ria uníssono e comentava.

Mariana detestava gente que comentava no cinema e precisava desabafar isso com alguém. Mas era a única vida na maldita coluna. A não ser por aqueles pés apoiados na poltrona. Vinham da fileira de trás. Engraçado, parecia vir também dali aquela risada aguda e infantil. Curiosa, Mariana dava uma olhadinha pro lado de vez em quando. Tênis vermelho. Espiou de novo. Pernas cabeludas. Devia ser homem. Ou uma feminista. Bem, que importava afinal de contas?

O filme inteirinho transcorre em um dia e meio. O cenário é Buenos Aires. Golpistas, selos, hotéis e muita grana envolvida. Uma película cheia de ritmo e cenas abissais que a fizeram, por fim, amenizar a angústia do primeiro encontro. Ao caminhar em direção a saída da sala, cabeça baixa, Mariana viu de novo aqueles pés, agora lado a lado, descansados no chão, dentro do par de all’star vermelho.

A imaginação é mesmo uma lareira. Ficou supondo que o cara, o dono dos pés calçados nos tênis vermelhos, devia ser um destes tipos escandalosos, que gostam de chamar a atenção. Desses meios largados que se sentem completamente à vontade para ocupar também a poltrona da frente e rir estridente até das cenas menos engraçadas. Um destes solteirões que vão ao cinema sozinhos no frio arrepiante de julho em Porto Alegre. Ela não, ela tinha um encontro.

Consultou o relógio da praça: estava quase na hora. Mariana não fumava, mas parou numa birosca pra comprar cigarros. Precisava relaxar. Saiu apressada, com a mão rolando dentro da bolsa a procura de um isqueiro.

- Quer fogo?

Não era possível. O cara do tênis vermelho! Será que ela estava enganada e, na verdade, ele era um psicopata? Haveria seguido ela até ali? Haveria uma câmera oculta no isqueiro? Mariana curvou a cabeça para ele acender o cigarro dela, mas estava definitivamente decidida a não aceitar balinhas ou quaisquer doces, caso ele oferecesse.

- Eu não fumo, ela disse, meio nervosa.
- Eu notei, ele rebateu.
- Sério. É que estou um pouco ansiosa por causa de um encontro.
- Eu te vi no cinema.
- Onde?
- Na primeira fileira.
- Gostou do filme?
- Nossa! Achei bravo! Que roteiro, não? Aquela cena em que o cara toca o interfone da velhinha, tu colocou teu casaco bem na hora.
- Como assim?
- Ué, fiquei te olhando. Fiz associações das cenas com cada um dos teus movimentos. Tu te mexe pra caramba, hem!
- Ta falando sério?
- Na verdade eu sou um psicopata e te segui até aqui.
- Hum, imaginei. Eu sou Mariana, e tu?
- Carlos Eduardo, cinéfilo, cineasta e produtor. Um romântico.
- Hum, gostei. Quer tomar um café?
- Não, obrigada. Não bebo café, mas te acompanho.
- Engraçado, achei que todo pscicopata gostasse de cafeína.

Pararam numa padaria. Pediram chá e sentaram à mesinha da calçada. Coberto por uma lona de plástico transparente, o ambiente amenizava um pouco aquele vento frio do inverno portoalegrense. Mesmo assim, Carlos Eduardo desenrolou o cachecol do pescoço e colocou-o delicadamente sobre os ombros de Mariana. Depois, tirou um pocket do Fernando Pessoa do bolso e começou a ler. Mariana sentiu uma pontada bem na boca do estômago e relutou. “Olha, preciso ir embora, eu tenho um encontro”, ela repetiu umas oito vezes, sem conseguir se mover.

"Fica, vai! ", ele dizia com a voz amena, emendando Mário Quintana em Florbela Espanca. Mariana se opôs, Beto já devia estar na espera. Tentou mentalizar Carlos Eduardo dormindo de meias, mas não adiantou. Ele era tão encantador dentro daquele par de tênis vermelhos, a barba por fazer, os movimentos exatos, as sobrancelhas espessas, o queixo perpendicular e ainda por cima gostava de poesia! Conversavam sem intervalos, os assuntos pulando de dentro da boca.

Num rompante, Mariana saltou da cadeira, reuniu toda sua força racional e disse “agora é sério, preciso ir, preciso ir!”. Mas ficou. A pontada no estômago tomou elevador até o coração, tarde demais... Não era culpa dela. Não era. Ademais, Carlos Eduardo sabia “Poema em linha reta” de cor e salteado. O que ela podia fazer com aquilo?

De pé, olhando pra Carlos Eduardo, Mariana não sabia o que fazer com aquele calor repentino, queimando-lhe a garganta, os pés, a nuca. Por fim, suspirou:

- Putz!
- Que foi?
- Não vou mais ao encontro.
- Há! Que bom! Senta aí, vai...

Ela sentou.

Carlos Eduardo levantou:

- Pensando bem, putz...
- Que foi?
- Acho que se a gente ficar aqui vou me apaixonar por ti.
- Putz, eu também.

19.5.07



três amigas numa noite destas:

- nossa! que frio!

- ai, eu queria um grande amor pra me esquentar!

- será que a falta de um grande amor agrava a sensação de frio?
Confuso

Eu havia combinado com Andréa que iria até sua casa. Mas liguei para Renata, decidido a encontrá-la. Eu estava confuso. Andréa era ótima companheira, linda, cheia de qualidades, mas, agora, tudo o que eu conseguia lembrar é da determinação que ela tinha em subir ao altar. Antes dela eu tinha uma namorada que trabalhava num circo. Anita era malabarista e cuspia fogo pela boca. Tinha fixação por aquilo. Não havia local apropriado: na saída do restaurante, no meio da exposição e até num jantar na casa dos meus pais, lá estava ela, feito um dragão, expelindo e engolindo labaredas.

No início era excitante, o espetáculo de Anita sempre antecedia nosso sexo. Ela se contorcia feito solas de borracha e queimávamos de tesão, os dois. Mas um dia, numa viagem de fim-de-semana, Anita incendiou o quarto da pousada e comecei achar aquilo perigoso demais. Fiquei paranóico. Tranquei num armário todos os líquidos inflamáveis da casa, instalei extintores na sala e na cozinha e passei a dormir com baldes d’água ao lado da cama. No celular, o primeiro número da agenda era o do Corpo de Bombeiros. Anita ficou magoada e, por fim, nossa chama se apagou.

No período de transição, entre Anita e Andréa, conheci Candy Bree. Tem que dizer assim mesmo, com nome e sobrenome, por uma exigência dela. Candy Bree era modelo e queria ficar famosa. Nos conhecemos num desfile de moda. Ela apresentaria as roupas de um velho amigo meu, Giorgi & Giorgio (este pessoal da cena fashion tem mania de nome e sobrenome).

Giorgi & Giorgio foi meu colega na faculdade. Eu estudava desenho industrial e ele design, mas cursou uma disciplina do meu curso “por que queria uma inspiração extravagante”. O fato é que Giorgi & Giorgio despontava como vanguardista em novas formas de se vestir na época em que conheci Candy Bree. Topei com ela no corredor. Estava nervosa.

- É este sapato altíssimo com asas de avião. Tenho medo de me estatelar no chão e fazer papel de ridícula.

- Ora, isso não vai acontecer. Se você cair, eu subo na passarela com um cartaz de protesto ao caos aéreo e você ficará conhecida como uma manequim politizada. Imagine a manchete: “Modelo ativista insurgir-se contra Governo”. Vai ser um sucesso!

Eu era assim, um tanto cínico, mas pelo menos Candy Bree se acalmou. Perguntou o que eu fazia ali, nos bastidores, se conhecia “alguém importante”. Ficou fascinada quando eu disse que era scouter, à procura de new faces. Eu era um canalha. Depois do evento, passamos na casa dela pra buscar seu book fotográfico e seguimos pro motel.

Antes de transarmos, Candy Bree me contou que já havia participado de vários comerciais de televisão. “Nunca me dão o papel principal, você acredita? É um mundo muito competitivo. Quando aparece uma carinha nova, como a minha, as tops mais antigas te sabotam, te fazem sentir menor, sabe?”

Começou a chorar. Eu abri o livro de fotografias dela e disse coisas do tipo “Veja! Quanta expressão!”, “Nossa! Você tem uma mistura exótica!”, “Deixe-me adivinhar: é filha de índios e libaneses?”. Na verdade, Candy Bree era filha de pernambucano com gaúcha, o que, de fato, havia resultado numa mistura muito bonita. Tirei a roupa dela com a boca, lentamente. Tinha as coxas magras, mas muito firmes. E uma manchinha logo abaixo do seio que me deixou fascinado. Fiquei horas passando a língua ali. “Não sai não. É de nascença”, ela me disse. Eu ri.

Depois daquela noite, Candy Bree passou a me telefonar todos os dias. Contou que tinha um namorado, que nosso encontro foi muito bom pra ela, mas que não podia mais ter “aquele tipo de contato” comigo, por que Carl Juny "era um cara legal, mas muito ciumento e um pouco violento”. Sim, Carl Juny era modelo também. Candy Bree me contava que as coisas andavam difíceis, estavam os dois sem emprego fixo e Carl Juny já sabia da noite que tivemos juntos, mas ele era tão bacana que havia nos perdoado. “Então, será que você podia arranjar algum trabalho pra nós dois?”

Finalmente confessei a Candy Bree que eu não era olheiro de rostinhos coisa nenhuma, mas sim um excelente e respeitado projetista numa fábrica de eletrodomésticos, pedi que ela me desculpasse, pois eu havia mentido por paixão súbita, o que é um motivo nobre, e que conversaria com Giorgi & Giorgio sobre o caso dos dois. Acho que deu certo, pois duas semanas depois eu e Andréa estávamos na cama assistindo novela quando, no intervalo, aparece Candy Bree e um cara alto e forte, que supus ser Carl Juny, estrelando um comercial de xampu anti-caspa.

Andréa era professora universitária e queria casar. Em três semanas de namoro eu já conhecia toda a família dela, da avó aos primos de terceiro grau. Todos faziam votos, com exceção de Toscana, o cachorro. O pai queria saber minha opinião sobre aplicação de investimentos. A irmã mais nova bordava toalhas com meu nome. A mãe me recebia com iguarias italianas. Era uma gente esquisita, mas agradável.

Com o tempo, ganhei cadeira cativa na cabeceira da mesa de jantar e as conversas passaram a girar em torno de um só tema: o noivado. Na minha casa, Andréa havia instalado um armário só para ela e mudado os móveis de lugar. Um dia, abri a porta e tive a impressão de estar no apartamento errado. Andréa tinha pintado as paredes. “É cor de abóbora, amor. Cê não gostou? Comecei a ficar apreensivo.

Dizem que o homem inerte não sente as amarras que lhe prendem. Comecei a me movimentar. Já não jantava duas vezes por semana na casa de Andréa e alimentei um ódio irremediável por Toscana. Fiz dele meu pára-raio. O maldito cachorro que comia meus sapatos estava com a família há 12 anos. Mas não importava, travei embate, era ele ou eu.

Inventei uma gripe viral e fiquei quase duas semanas sem aparecer. Andréa desesperou-se com meu comportamento. Ficou muito triste, chorou ao telefone, disse que os pais estavam dispostos a se desfazer do vira-lata e que sentiam minha falta. Aquilo me deixou tão culpado que combinei com Andréa que iria até sua casa naquela noite. Mas não sei o que me deu. Ao invés disso, telefonei para Renata, decidido a encontrá-la. Eu não sabia o que fazer. Eu estava confuso. E Renata era psicóloga.

18.5.07

som da noite:
"sob o teto azul da cidade sem brisa"...

perambula, vai.
ombro-livre

agora é deste jeito: sexta-feira é dia de deixar a bolsa em casa. e balançar os ombros por aí!
planos:.
marco estes dias no punho.
enquando não finda o maio,
ensaio o junho.
"desregramento dos sentidos"
.

exceder a visão,
dar ouvidos ao sonho,
apurar pr'além do corpo,
sorver o gosto com a mão,
procurar cheiros com a boca:

o que eu quero nesta vida é dar cabo a sisudez dos sentidos!


Nada a ser dito

Era uma tarde ameaçadora. Depois de quatro anos tornariam a se encontrar. Carla, pra variar, estava atrasada. Andrei esperava sentado à mesa, em frente ao segundo copo de suco. Levemente ansioso, divertia-se ao constatar que, depois de tanto tempo, não conjeturava mais sobre os motivos da demora dela. Fosse antes, estaria sôfrego e paranóico imaginando ela por aí, namoricando outros homens, sorrindo a outros homens, despertando olhares de volúpia em outros homens.

Agora não. Agora ele mantinha os ombros suaves e pensava em motivos racionais, como engarrafamentos e imprevistos comuns ao mundo contemporâneo. Pediu queijo coalho para beliscar. Pesquisava na memória a última vez em que se viram: Carla usava um suéter vermelho, jeans, sandálias rasteiras e sustentava aquele atrevimento comum aos 26 anos.

Ele era três anos mais velho. Havia engordado cinco quilos e perdido um bom punhado de cabelos de lá pra cá. E ela, como estaria? Haveria também mudado as formas? Perdido o rebolado? De repente, Andrei foi assolado pela lembrança daquele olhar de ameixa que ela tinha. Será que ela ainda tinha? Lembrou de outros almoços que tiveram juntos, quando ninguém comia nada e se alimentavam um do outro.

Experimentou a mesma sensação de alma atormentada ao retomar os momentos em que se sentia amedrontado diante do amor dos dois. Um sentimento sempre controverso, voluntariamente feliz e infernal. Duvidou da idéia do reencontro. Talvez não tenha sido uma iniciativa inteligente telefonar para Carla. Será que ele realmente queria saber como ela estava? Quer dizer, será que ele, de fato, precisava ver com os próprios olhos? Não podia fazer como toda gente moderna e enviar um e-mail perguntando?

Tarde demais. Carla já estava ali, metendo os dedos no pratinho dele pra roubar o queijo, cumprimentando ele com a mesma naturalidade com que se cumprimenta o porteiro do prédio, aquela mesma insolência de quem não conhece a dor, de quem contém tanta luz e tanto negro que parece irmã do desespero. Carla sentou-se do outro lado da mesa, estendeu os lábios de orelha a orelha e cravou os olhos nas pupilas dele.

- E então, camarada? O que nos traz aqui?

Ela disse isso de um jeito tão habitual que Andrei ensaiou um princípio de cólera. Sentiu-se ofendido por aquele trato íntimo que Carla tinha, como se não tivesse sofrido uma gota pela falta dele. Como se não sentisse saudade, como se os dois estarem ali, juntos de novo depois de tantos anos, não tivesse a menor importância na vida dela. Teve uma pontada de raiva ao perceber que, enfim, ela parecia inteira. A mesma Carla de antes, incólume ao oceano de veneno que ele despejou em cima dela no dia em que terminaram.

Andrei não pôde responder. Teve vontade de quebrar tudo, de bater nela. Carla conhecia muito bem aquela ira disfarçada e sentiu dó. Ficou abatida ao notar que Andrei, tão talentoso, permanecia inábil. Ignorante a própria capacidade de transformar a vida. Carla emudeceu também ao constatar que o tempo, afinal, não conseguiu romper a perversidade estocada de Andrei.

Depois de cinco minutos de pleno silêncio, Carla levantou calmamente, os olhos dela fixados nos olhos dele. Pediu licença e foi embora. No corpo, a certeza sossegada de que não havia nada a ser dito. Com ela, o amor e a sucessão dos anos haviam atuado de forma bem diferente: ensinaram-na cruelmente o quanto cada minuto, cada chegada, cada abraço, cada beijo e cada despedida furtam pedaços de juventude.

Foi, sem olhar pra trás. Caminhou sem rumo durante horas, certa de que realmente não havia mais nada a ser dito. Nem tempo a perder.

17.5.07

socorro!

há uma chuva de estrelas no teto do meu quarto. e eu não consigo mais acordar. nem dormir.

16.5.07

hóspede poético

poeminhos

um lenço
forte o bastante
para a tromba
do elefante
.

um pente
que penteie sozinho
o lombo
do porco espinho
.

um creme
anti-ruga
para o pescoço
da tartaruga
..
.
são da natalia magalhães aragão, de 8 anos

14.5.07

som da noite:
.
filosofia:
.
pés no chão, apontados pras nuvens...


amar é esquecer

maria é louca de paixão pela afilhadinha,
mas moram longe uma da outra.

sempre que consegue aproveitar a pequena,
maria brinca, deita, rola e rediz:

- eu fico este tempo todo distante mas te amo, te amo, te amo!

com aquela candura comum às crianças, a menina ri.
e lança:

- eu também te amo, maria. mas eu esqueço.

inda bem, o amor
.
mesmo com tudo tão instantâneo,
rumo ao frenético consumo desenfreado,
o amor continua extemporâneo,
patético e sempre por ser saldado.

(você até encontra na feira,
mas passeando, dando bobeira.
inda bem! o amor descansa
bem longe da prateleira!)
escute a blogosfera

aqui.