31.5.05

imagens vãs

estes dois olhos quadrados de cima mim, tirai!
não vês que tua tarja não me traduz?
crês em mim demarcada, estanque e indicial?
então não sabes que corro por aí de salto alto sem calcinha?
que brinco de roda e de balanço?
que à noite,
sozinha no meu quarto,
eu penso coisas de feitiçaria
e constelo de loucuras o universo nú?

por que, afinal, me quer tão exata?
esmerada? perfeita? contida?
te esqueces que meus sonhos,
de tão suaves,
me acompanham enquanto
falo, penso, beijo,
gozo, esqueço
e adormeço?
eu ecôo!

levanto bandeiras e tiro a roupa.
na guerra, abandono os escudos.
eu contrario os mitos.
me lambuzo de batom e devoro livros.
teço amor.
e seduzo pela poesia do despertar

na confusão, evoco os ritos e ritmos.
reúno todas que moro
e celebro maçônica a minha contradição.

e então tu me queres uma coisa só?
não vês o absurdo?
duelo entre concretude e abstração.

por favor, afastai de mim os teus colchetes.
não percebes que não posso estar dentro?
que não tenho cabimento?

distraíste tanto de mim?
quando foi que nos perdemos de vista?
quando foi que os olhos nos enquadraram?
que nos fizemos tão rasos?

por favor, entenda:
não me prendo, não me prenda.
livrai-me dos julgamentos!
e arrancai esta dor surda do meu caminho.

pra que eu siga profunda
mulher insegura
menina madura
todas eu
o momento, a condição.
seta pra qualquer direção.
sou também a que passou.

por favor, meu amor,
não fiques comigo e extraia de cima de mim estes dois olhos quadrados!
se não puderes ver
que preciso mudar
pra continuar a ser
quem sou.
desenredo

vago errante no deseclipse
dos cruéis desachegos
das noites desdormidas

estranho o desamor
enquanto experimento
conversas estancadas
gestos que omiti
e creio em tardes sem possibilidade

as vontades,
desabituadas,
e contrárias à razão,
acendem uma a outra
ao passo que o que posso
é alinhavar palavras
no deseixo da saudade inútil

depois, desensino meu corpo
entorpeço a madrugada
desenlouqueço
desdenho dos sonhos sem nexo
qualquer hálito de desejo,
desfaço planos conjugados

desdou meu íntimo
recolho meus fragmentos,
e amenizo o desapreço
diante do que foi vivido

me desenlaço, enfim,
de tudo que,
se fosse,
teria sido.

20.5.05

copos de maio

um trato:
segreda em mim
teus devaneios ébrios
seca minha boca
e esquece minha falta de tato
nos deixa...
que o tempo escorre sozinho
aproveita esta brisa noturna de maio
e te me deixa prosa
no teu papo
molha meu olho
e cai comigo
no barato
conto do vinho
pisci(C)anos

- É estranho como a vida se conduz. Assim, ela mesma, sozinha. Como se por trás do arbítrio houvesse um caminho fixo, traçado e inviolável. Que nos guia ao tim-tim por tim-tim do que faremos. Magnetismo ao qual sempre obedecemos. E por mais que nos atraia o inviável, seguimos resignados. Impotentes.
- Tá falando comigo ?
- É. Não vê a gente aqui, juntos?
- No ponto de ônibus? O que é que tem?
- É muita coincidência.
- Não vejo o porquê.
- Olha, eu sei que falando assim até parece cantada, mas...
- Cantada? Não, não, que isso.
- Sei que neste primeiro momento a nossa relação parece volátil, feito bolhas de sabão soltas no ar, mas...
- Tem horas?
- Não desdenha, vai. Me escuta. Eu sinto que a gente tem alguma coisa em comum.
- Eu também. Mais de meia noite, nós dois, uns pelados, sem grana pra nada, esperando ônibus lotado. Praticamente almas-gêmeas.
- Ora, não seja tão cruel.
- Realista, realista.
- E se eu pedisse teu telefone?
- Eu não daria.
- E um beijo.
- Rá.
- Poxa, tu não acredita na gente?
- Olha, eu preciso terminar de ler este livro até amanhã.
- Tudo bem, então. Mas tu trabalha também, ou só estuda?
- Trabalho.
- Pelo jeito não vai conseguir.
- O que?
- Entregar a resenha no prazo.
- Era o estímulo que me faltava.
- Eu juro que te conheço de algum lugar.
- Sério, eu costumo ser mais educada e simpática, mas to muitíssimo cansada e além de tudo na fossa.
- Fossa?
- É. FOSSA, em letras maiúsculas e cursivas, piscando em néon, que fica mais deprê ainda.
- Engraçado, você me parece bem.
- É. Eu te pareço um monte coisas que não sou.
- Não quer mesmo beber alguma coisa? A gente podia conversar.
- Já conversamos o suficiente. Além do mais, preciso cumprir meu papel de namorada abandonada e ficar em casa, melancólica.
- Lendo, pensando e chorando?
- É. O trio perfeito da dor de cotovelo.
- Você é de peixes.
- Por que a pergunta?
- Não foi um pergunta. Eu sei que você é de peixes por que eu também sou de peixes.
- Sério? Detesto piscianos. Acho todos uns chatos. E só pra ficar registrado, sou virginiana, a fina flor da praticidade. Onde tu mora?
- Na dáblio três sul. E tu?
- Aqui na ele dois. Quer mesmo tomar essa?
- Prometo manter a distância adequada da donzela magoada.
- E me poupar dos eufemismos exagerados?
- E te poupar dos eufemismos exagerados.
- Fechado.
- Ou aberto. Depende do ponto de vista. Aquela coisa que eu tava te dizendo sobre o pré-traçado da vida. Isso que no faz conversar agora e...
Devenir

Tem alguém me chateando as pampas e desconfio que sou eu. Café, por favor. Não, chá não, que é politicamente correto demais. Sim, açúcar. Como eu ia dizendo, há um comichão aqui dentro. Um aperto bem no peito, sabe? Preciso te contar. Me sinto como se assassinasse silenciosa e polidamente a mim mesma. Desculpe ficar te enchendo com essas coisas. Mas me atordoou tua confissão. Falar confissão parece um coisa cheia de culpa. Tua declaração. Isso! Declaração é melhor. Quer dizer, ouvir que me ama desde a primeira palavra que eu disse seis anos depois de nos conhecermos não é algo tão fácil de assimilar. Muita coisa mudou de lá pra cá. É só a gente mirar o espelho. Olha, não quero te magoar. Já magooei muita gente. Te acho uma ótima pessoa. Quer dizer, ótima pessoa soa impessoal demais, mas o que quero realmente dizer é que adoraria me apaixonar por você. Mas tenho certeza de que se realmente me conhecesse, não iria gostar nada, nada de mim. O que estou falando é que sou sozinha. Jamais poderei deixar de ser sozinha. Ta vendo esta gente toda de óculos de armação retangular preta? Pois é. Estão aqui mais ou menos pelo mesmo motivo que a gente. Fazendo hora pro teatro num lugar legal. Um café que também é livraria. Mas quer saber? Me sinto distante de todos. Conversamos como que encenando personagens. Cênicos, somos todos cênicos. Eu poderia te beijar agora, meu bem. Mas não é isso que eu quero. Sabe, me comoveu muito te ouvir. Todas as tuas palavras encantadas sobre mim. E até as não tão delicadas assim. Dissimulada e oculta, você disse. E eu nem me condoí. Sabe por quê? Quer saber por quê? Por que já ouvi isso muitas e muitas e muitas vezes. Inúmeras. Já caiu no vulgar. Esse teu amor, eu guardo comigo. Com zelo, cuidado, carinho que só. E ponto. Como você agüentou tanto tempo? Como pode nos privar do sentimento? Por amor nada, Lúcio. Amor é outra coisa. E é essa outra coisa que eu busco. Um devenir, sabe? Eu sei que você sabe. Me conhece bastante. Alguns me dizem que é assim mesmo. A gente tem que ceder. Mudar. Os dois amantes devem fazer concessões. Sim, mesmo que se violentem por dentro, afinal. Nada disso. Eu não posso acreditar que meu sonho não existe. Eu fico com meu sonho, sabe? Então eu te beijo, a gente faz amor e vive umas duas ou três semanas lúdicas de paixão débil. E só. Por que depois disso, você vai querer que eu mude e deixe de ser um monte de coisas que eu sou, sendo que foi por esse amontoado que você se apaixonou. E eu? Eu idem. Não é um loucura? E deixa um de nós dois vacilar pra você ver. Mesmo sem perceber, a gente vai tirar proveito da fraqueza um do outro. E enumerar cada um dos nossos defeitos, didaticamente. A gente vai abrir mão da parte ruim e fazer o outro reflexo disso. E tudo bem, Lúcio. Continuaremos inteiros e quase intactos. A sorrir e conhecer gentes por aí, pra amar e entorpecer e magoar e assim por diante. Por que somos assim, des-tru-ti-vos. Ah... a velha cegueira da verdade única. Melhor sermos amigos então. Não acha? A gente pode se abraçar, conversar e se sentir à vontade pra falar das dores e chateações, emanar compreensão, frequentar cafés cheios de gente com óculos preto de armação igual e assistindo peças de teatro legais de quando em vez.

13.5.05

Enredo

"te enganas se te sôo suave enredada na cama em mim"



Deixa correr teu olhar denso
Seco de cólera
Alicia minhas lágrimas
E me dá teus dedos
Pesquisa meu corpo
Silencia minha dor
Antecipa minha cura
Com teu vapor na minha nuca

E destrói minhas entranhas
Meus olhos
Minha boca e meus seios
Vísceras e todos os orgãos
Apunhala meu corpo
Minhas pernas e estômago
Por que
se
alguma
coisa
em
mim
tiver
vida

É tua sentença

Se qualquer parte pulsar
Serás condenado

Te consumo

Num só bocado

O livro que lês
O travesseiro em que descansa
Tua cabeça anestesiada
Me diga onde está
Teu sonho
Eu devoro tudo
Tuas unhas
Tuas aftas
Teus pêlos
Teus pesares
Teu pavor
Tuas crises
Eu como
Sebo
Amor
Bebo gozo
E suor
Me diz onde está teu segredo
Como e bebo teu segredo
Numa só vez
Como e bebo
Tudo o que tu disser que é teu
Até
o
fim

(Não só pelo amor, pela paixão
Mas pela disposição
às conseqüências
Que só os atos puros enredam)

10.5.05

cheia de novas minguantes

no espelho da sala escura
a lua nova reflete
estes meus olhos
que já não se reconhecem
nos teus

e os sonhos despencam até onde não há mais chão para cair até onde os sonhos esquecem que foram sonhados tão enevoados e reles que parecem vagos vazios já não há mais sustento nem restos de planos trincados ou pedaços de passado e são mortas as lembranças

só esses olhos
velhos desconhecidos
e essa lua estraga-prazeres

da fusão

mesmo que
eu queime
minhas roupas
de domingo
diárias
de sono
e
de cama

derrota
minha pele
e vem
no meu
próprio suor

e ainda
que
no banho
me esfregue
louca de
unhas
e furor

a violência vem
de dentro
implacável
(vãos
gritos
soturnos)

eternizado
suga
rouba
esta que sou eu
este corpo
que é meu

teu cheiro

9.5.05

(S)alvos

Do amor
que tanto faz
admirar o presente
temer o futuro

Não há senão
vontades
pensadas
com olhos
dobrados

Devaneio de dois
poesia a quatro mãos
saliva pactuária

Dois corpos lascivos
cintilam
e se fabulam
Alheios aos olhares
Insensíveis às setas insanas
(que apontam vértices-paixão


Não há senão
A delicadeza das línguas
(tertúlias surrealistas
Envergando ao máximo
a aspereza da dúvida

2.5.05

Diuturnos

Às vezes, nestas noites de desespero e pacto
Quando furtamos lençóis
E sentimos
Os pêlos, os poros, os pólos
E a umidade de aroma comum
O sentimento ecoa adentro

Nestas noites ou tardes incontroláveis e enevoadas
Em que morremos de amor
O silêncio grita estesia
E o corpo não é mais corpo
É carne
Sulcada
Que arde por lentas horas
Até cairmos no sonho

São em manhãs maçônicas e sombreadas
Que te segredo:
- traduzo lágrimas -
Descansa em paz no meu ventre
Pois somos supostos
Secretos e desconhecidos

O universo nos espia
Mas não entende nada
Sobre as metas patetas que nunca chegarão a ser

Senti os olhos dela fincando-me as costas quando me despedi. Havia gritos em meus ouvidos. E uma dor na garganta por terminar daquele jeito. Duvidei do meu passo. Pensei em voltar. Éramos tão e tanto. Éramos melhores. Intocáveis, até. Enquanto discutíamos marxismo, lirismo, budismo entre uma solução e outra para a garantia da sustentabilidade do planeta. Psico isto e aquilo. Bio, filo, sócio, epistemo, geo, cali; qualquer logia ou grafia. E tinha tanto tesão! Tanta língua sem nojo. Tanto gosto de seio e pescoço.

Ela disse que eu voltaria, que não conseguiria sempre fugir. Me desejou alguma coisa boa. Que eu não me perdesse de mim, fosse feliz, algo assim. Mas tinha um rancor. Uma mágoa que deixamos secar, apodrecer feito a comida esquecida fora da geladeira quando passávamos muitos dois, três dias numa depressão paralela. Silêncio absoluto. Nenhum estímulo. Nada. Ela tinha a alma descoberta. Olhos infantis. E os pulsos marcados desde um abril infernal. Seu sorriso superficial não escondia o esforço cotidiano para mover os lábios.

Quanto a mim, sempre soube que seria assim. Sustentamos durante muito tempo a miséria um do outro. Uma coisa que chamávamos amor. Mas era medo. É incrível como o medo nos toma, nos têm. Bom dia. Eu te amo. Eu também. Não sei viver longe de ti. Uma caneca de café. Cinzeiro cheio. Meia dúzia de trepadas por semana. E oito horas trancados num escritório fodido pra poder pagar aquela poltrona indiana que nos fazia dentro do esquema. Tanta necessidade inventada. Todo dia um querer novo. Uma angústia que nunca satisfaz. Uma secura de bem, do que é bom.

Eu devia ter feito tantas escolhas diferentes das que fiz. Eu queria parar aqui mesmo, no meio desta rua e deitar encolhido. Ou fugir pra um quarto escuro. É tão difícil pensar em seguir sozinho. Freqüentar outros lugares. Enfrentar natais e reveillons. Relembrar os anos velhos. Não sei pra onde ir. Não quero ouvir ninguém dizer que vai passar. É tão minha essa dor. A dor de te pensar. Tuas olheiras fundas e teu cabelo vermelho quase da mesma cor dos teus pulsos naquela noite abril. Sabor de vinho e virilha. Mentex. Cheiro de sexo. Meu pau ficando duro nesse frio de solidão. Eu me despeço. Eu peço que me deixe. E não finjo nenhuma compaixão. Eu quero que te foda sozinha e ninguém mais o faça por ti.

Mentira. Te desejo também um outro caminho. Um outro tempo. Desejo que comeces tudo de novo. Além e aquém de mim. Hoje, caminhando entre rostos desconhecidos, adoraria nunca ter te encontrado. Eu nunca teria saído do supermercado querendo te ver de novo. Nunca teria te perguntado se tomate seco combinava com atum. E tu nunca terias me dado a resposta maldita que me fez apaixonar: “A combinação é mais possibilidade que fato”, assim mesmo, filosófica e faceirinha na noite de quinta-feira. Naquele tempo tu ainda tinhas um riso fácil e ombros balançantes e – como sempre – deixava as coisas caírem no chão. Impressionante como as coisas escapulem de tuas mãos! Naquela noite, eu me desfiz. Fui pra casa, telefonei pra desmarcar o jantar e comi aquela possibilidade sozinho. A cada garfada eu lembrava de ti. Deus, como desejo ter ido a outro supermercado ou ligado pro Giraffas! Ter feito compras num outro mundo que não o teu! Assim fosse eu não teria te reconhecido mais tarde na Funarte. Teria prestado atenção no teatro e não nas tuas pernas bambas, no teu corpo livre, na tua beleza completa, acordada. Essa tua beleza que me fez dormir por tanto tempo.

Talvez eu desperte na próxima esquina e não tenha tanta necessidade de pensar em ti e nem de te esquecer. Mas durante este enquanto, tu vens acima - pesando no fardo de um arrependimento.
antieu

dia-a-dia amarro minhas asas
e simulo existir no mundo da normalidade
eu digo sins, tudo bem
e
nãos, obrigada

tempo em tempo
contraponho
medíocre
e
empática
a vida imóvel
interrompida
estática

e justifico
cínica e sorridente
(cheia de dedos no trato)

dia-a-dia
sorvo
trago e engulo
minha amargura

é na garganta
que
estanco meu sonho
finjo candura e sangro
pra dentro

noite na noite
eu tremo
temo
tremeluzo
o que
eu vingo
minto
dissimulo
e uso

entre tantos
entretantos
ainda entreteço
esperanço

ademais,
noite sim,
noite não,
nos asamos
e eu sinto um pouco de calor
um resto de vida

na clausura da gaiola
enfrento os laços
estorvos morais
e rezo por mim e por ti

no fundo,
apavoro
morro de medo
de uma vingança alada